Monstro é um retrato de Portugal que o Brasil compreende bem
O Teatro do Vestido levou ao Brasil novos criadores e um Portugal muito diferente do habitual. Apresentou Monstro, um espectáculo que procura a origem dos males que nos afligem.
O grupo apresentou as três partes da trilogia — Calamidade, Hecatombe e Catástrofe — em São Paulo, apanhando o dia mundial do teatro (27 de Março), e as duas primeiras no Fringe do Festival de Curitiba, graças ao convite da SP Escola de Teatro e a um apoio da Gulbenkian.
Em São Paulo a companhia ocupou a sala preta da Escola de Teatro, a poucos passos do histórico Teatro de Arena. A escola situa-se em plena Praça Roosevelt, antigo ninho de tráfico de droga e prostituição, transformado em pólo da cena teatral, com uma dezena de espaços alternativos porta sim porta não, em cujos bares se juntam os aspirantes a artistas e os consagrados.
O Vestido ficou três semanas em residência, durantes as quais criou a última parte da trilogia, juntando-se a alunos desta escola, instituição estadual tutelada pela Secretaria de Cultural do Estado de São Paulo (SESC) e dirigida por Ivam Cabral, da companhia de teatro experimental Os Satyros.
Em Curitiba, no estado do Paraná, apresentaram-se no último fim-de-semana do Fringe, o programa paralelo do festival, que foi buscar o nome ao congénere de Edimburgo, um dos maiores encontros de artes performativas do mundo. E a responsabilidade era grande.
O Festival de Curitiba, que decorreu este ano de 26 de Março a 8 de Abril, é talvez o maior do Brasil, dado o número de espectáculos apresentados (mais de 400), a adesão do público e a exposição na imprensa nacional. A procura é tal que, à porta das apresentações com lotação esgotada, o auto-intitulado Movimento dos Sem Ingresso recolhe doações — bilhetes que sobraram — num boião de plástico. Críticos e jornalistas acotovelam-se primeiro na sala de imprensa e nas plateias, e depois nos bares e restaurantes da cidade — o Café do Teatro, o Mafalda e o Bar do Alemão são paragens obrigatórias.
A vida portuguesa como ela é
A originalidade da proposta artística do grupo português foi o ponto mais consensual entre os espectadores, quer em São Paulo, quer em Curitiba. Para Lenise Pinheiro, a mais reputada fotógrafa de cena no Brasil, Calamidade, de certo modo um “manifesto”, foi o mais original de todos os espectáculos que viu este ano no Festival. A abordagem directa e crua dos temas escolhidos — ora mostrando documentos, ora recorrendo a depoimentos — surpreendeu os vários públicos.
A contenção dos intérpretes foi outro dos tópicos elogiados. Sidnei Martins, da administração do SESC São Paulo, destacou muito o sentido de humor que moderava o envolvimento político do espectáculo. “As cenas estão bem maduras, tem muito trabalho de ensaio até encontrar a forma certa”, acrescentou.
A maior parte das pessoas parecia entender muito bem o que se passava em palco, mesmo sem dominar as referências históricas. O glossário incluído no programa da trilogia, preparado pelo grupo para as apresentações no Teatro Pradillo, em Madrid, na extensão do Citemor a Espanha, ajudou bastante. Antes de cada apresentação, os espectadores liam com atenção os verbetes, que iam de Marcelo Caetano e Vasco Gonçalves, aos apoios directos às artes em Portugal.
O sentido do espectáculo não se esgota, no entanto, na história do país e na sua situação actual. É quase universal. Como diz Joana Craveiro, actriz e directora artística do grupo, as histórias das ditaduras são parecidas umas com as outras e a memória de cada uma delas é transversal às vítimas de todas. Uma das espectadoras de Curitiba foi conquistada logo de início – mal entrou no espaço e olhou o cenário deu com um fato inteiro pendurado numa persiana suspensa, o que lhe lembrou imediatamente o desaparecimento do jornalista brasileiro Vladimir Herzog, "suicidado" pela ditadura militar em 1975.
Por outro lado, o sentido de urgência pessoal que os actores dão a cada cena assegura as ligações aos espectadores, pelo menos a julgar pelas opiniões que se iam ouvindo aqui e ali. Depois de Calamidade, em São Paulo, Tatiana, actriz e massagista, dizia sem entrar em detalhes que algumas das falas e acções daquelas personagens lhe faziam lembrar a sua própria vida. E concluiu: "É um grito poético, dá voz a uma história íntima de Portugal, história que nunca nos é apresentada nos diários oficiais."
Quando um espectáculo de um país tão perto e tão longe do Brasil como é Portugal consegue chegar aos espectadores deste modo, já valeu a viagem. Mas não é fácil — para se fazerem entender por um público que não tem o ouvido treinado para a pronúncia portuguesa, os actores têm de falar mais devagar, abrir as vogais, incluir termos locais, explicar algumas passagens.
O estado a que chegámos
O espectáculo é recebido como um diagnóstico da crise europeia, como se percebe pela notícia publicada na Folha de São Paulo, um dos maiores diários do Brasil: "Grupo português traz ao país seu teatro político para falar da crise". Na verdade, é também um sintoma do estado a que chegámos.
A trilogia começou com uma carta de Gonçalo Alegria para a colega Tânia Guerreiro, quando tentavam encontrar saída para as crescentes dificuldades da produção teatral em Portugal. O ciclo do grupo nesse biénio era dedicado ao activismo político e social. Em Calamidade, com direcção de Joana Craveiro, os três atores recordam factos históricos mais ou menos familiares, procurando perceber a origem do estado actual. Em Hecatombe, dirigido por Maurício Paroni de Castro, discípulo de Kantor e Heiner Müller, antigo professor de Tânia e Joana em Glasgow, apropriam-se de figuras da literatura dramática, vestindo-as com roupagens portuguesas. Catástrofe, co-regida por Maurício e Joana, ocupa-se apenas da dúvida sobre como representar o presente e o passado.
O Vestido entra em 2013 com promessas de felicidade: uma encomenda do Festival de São José do Rio Preto, o regresso à SP Escola de Teatro, e uma peça nova, que se chamará Amor e Capitalismo. E Calamidade, o primeiro espectáculo da trilogia, já teve tantas representações fora como dentro de Portugal (três no Brasil, três em Espanha, cinco em Lisboa, uma em Montemor-o-Vellho, na estreia). Joana Craveiro diz que lhe dá muito prazer apresentar estes espectáculos no estrangeiro, porque sair permite dar a conhecer uma outra versão da história do país, passada e presente. Esperemos que o Monstro possa continuar a ser visto em Portugal também.
O crítico viajou a convite do Festival de Curitiba