Os inimigos aqui tão perto

Enquanto a sra. Merkel manifesta, na sua gestão política, um grande respeito pelo Tribunal Constitucional alemão, evitando tomar decisões que possam ir contra as normas constitucionais, por cá faz-se exactamente o contrário.

Perante a passividade dos parceiros europeus e das próprias instituições europeias, a Alemanha tem conseguido subordinar a gestão da crise ao seu calendário eleitoral e à sua agenda interna, complementando cada decisão punitiva e desfavorável aos países em situação económica difícil com os comentários indecorosos do seu ministro das Finanças que desconhece todo e qualquer preceito de diplomacia internacional.

Esta posição dominante que perverte o próprio projecto europeu em cuja construção a Alemanha tanto se empenhou, suscita da parte das opiniões públicas dos outros países legítimas reacções de repúdio. Mas não pode justificar a associação da líder alemã a Hitler, nem do poder actual do Governo alemão ao do nazismo. Este regime não foi um acontecimento banal e permanece até hoje um fenómeno único na história da humanidade, na sua capacidade de destruição, na organização política e industrial da morte, na dimensão de horror e bestialidade que atingiu.

Como dizia Michel Foucault, o poder exprime-se numa relação e não está localizado nem constitui um atributo dos dominantes. Para ser eficaz precisa que os dominados se identifiquem com ele, lhe confiram sentido e internalizem as práticas que garantem a reprodução da dominação. Nada mais evidente na situação que actualmente se vive na Europa. Quem foi que propôs a taxação dos depósitos abaixo de cem mil euros, no Chipre, senão o próprio Presidente cipriota, aparentemente para não penalizar demasiado os grandes depositantes a quem ele se sente obrigado?

Enquanto a sra. Merkel manifesta, na sua gestão política, um grande respeito pelo Tribunal Constitucional alemão, evitando tomar decisões que possam ir contra as normas constitucionais, por cá faz-se exactamente o contrário, ano após ano, e só falta pedir que se suspenda a Constituição da República Portuguesa e, com ela, a separação de poderes e a democracia. Enquanto a sra. Merkel toma decisões que vão ao encontro do interesse dos seus eleitores e faz as afirmações que tanto lhes agradam ouvir, por cá o ministro das Finanças dirige-se a membros do partido maioritário referindo-se aos ‘vossos’ eleitores, sem esconder o desprezo que a democracia e os seus concidadãos lhe suscitam.

Quando, durante a última campanha eleitoral, um turista finlandês abordou o então candidato a primeiro-ministro, em campanha na Madeira, dizendo-lhe que esperava não ter que ser ele a pagar-lhe o almoço, a história foi apresentada pela imprensa como mais uma prova da bancarrota a que o país chegara e que alimentava o discurso de quem queria chegar ao poder na altura. E as reacções a uma tal humilhação ficaram-se pelos sorrisos de compreensão e cumplicidade. Quando os dirigentes nacionais se assumem como líderes de um protectorado, tutelado por forças externas onde não existem eleitores, nem regras da democracia, nem política que não seja a da obediência a outros líderes europeus, não é preciso ir muito longe para encontrar os verdadeiros inimigos do país.

 
Psicóloga social e professora catedrática do ISCTE
 
 
 

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