"Ferrugem e Osso"/ "De Rouille et D''Os" - sim, é o interior do cinema de Jacques Audiard, demonstra o que se passa ali: corpos que se gastam em metamorfoses, personagens que rangem no processo de construção e de transcendência. Talvez só o título Nos Meus Lábios/Sur mes Lêvres (2001), filme com Emmanuelle Devos em surda infeliz e próteses auditivas, e Vincent Cassel em fura-vidas que se abeirava dela, tivesse capacidade de evocar assim os mistérios dos organismos. A sofreguidão e a delicadeza. Esse é o “tema” de Audiard: como homens e mulheres se transcendem e que limites se violentam nessa construção. No novo ecoa o antigo. Marion Cotillard não tem pernas (um acidente profissional: era treinadora de orcas em espectáculo aquático) e Matthias Schoenaerts também se parte, em combates de boxe. Forma-se um par, e no final uma hipótese de família mas isso sai-lhes do corpo. Podia chamar-se Nos meus ossos.
Pode-se experimentar um “vejam-se as semelhanças e as diferenças”: onde Audiard estava no tempo de Nos Meus Lábios, e onde está, no pós-Profeta (2009), com Ferrugem e Osso. Está em modo kitsch, ribombar gongórico, consciente da sua “arte”. (Ajuda o incontinente Alexander Desplat, com a sua música consciente da sua “arte”.) Tudo mais explícito, menos secreto, menos particular. Não descobre, Audiard, o assombro. Sublinha-o. É verdade que nos acena quando fala (fê-lo em Cannes) na importância de um filme delirante, trágico, sublime como The Unknown (1927), de Todd Browning, em que Lon Chaney amputava os braços para desencadear o desejo em Joan Crawford, que não suportava ser agarrada pelos homens mas que entretanto se curava da fobia, demasiado tarde, porém, para os ossos de Chaney... Audiard é inventivo, luminoso nas referências que (nos) atira, nessa forma de mostrar que o seu cinema existe há uma eternidade. Mas a vertigem e o medo não estão aqui, e estavam no filme de 2001, o tal com a voracidade de Devos. Aqui temos a redundante, amaneirada Marion Cotillard. A delicadeza, a sensualidade, o assombro (do mudo, inclusive) em Nos Meus Lábios; o barulho sem abismo, personagens só como exterioridade, e o espectador privado da relação íntima com elas, em Ferrugem e Osso.