A crise e as crianças
Acresce que estes “meios desfavorecidos” não são apenas os tradicionais, mas abrangem hoje muitas famílias anteriormente pertencentes a uma classe social com algum (mesmo que pequeno) desafogo e que, agora, estão estranguladas pelo desemprego, cortes sociais, aumentos incomportáveis da carga fiscal e das múltiplas falências.
Convém, no entanto, ter presentes três factos: um, é que sempre houve, ao longo da História, períodos de crise. Portugal, durante a II Grande Guerra, por exemplo, apesar de não ter estado directamente envolvido no conflito, passou tempos muito difíceis, com racionamentos de leite e de pão e com todo o tipo de restrições ao bem-estar. Segundo facto: a actual crise “apanha” a população portuguesa num estádio de desenvolvimento muito bom, com capacidade, portanto, de lhe fazer face. Mesmo com a redução do poder de compra ou de algumas benesses, e perspectivando-se um certo grau de empobrecimento geral, iremos, na pior das hipóteses, ficar muito acima do nível de vida da esmagadora maioria da população mundial. Terceiro facto: as crises servem também para reflexão, definição de novos paradigmas, para mudança e crescimento, e para nos libertarmos de erros e falhas passadas, de modo a que, pelo menos estes, não se voltem a repetir.
Recusando qualquer argumento arrogante e insuportável, do tipo “aguenta, aguenta”, e criticando, sem cerimónias, a insensibilidade social deste Governo, que, para mim, tem uma agenda política muito bem definida, para lá de uma incompetência igualmente explícita, estou, de qualquer forma, em crer que a actual crise poderá ser uma oportunidade para as famílias repensarem as suas prioridades, designadamente os seus hábitos de consumo, e, também, para evitarem uma coisa terrível: o desperdício.
Por outro lado, pode servir para ensinar as crianças a distinguir entre o que é essencial e o que é acessório: por exemplo, uma ida a um parque colher folhas secas, fazer colagens ou apanhar pedras e pintar, ou ir a uma praia apanhar conchas, podem ser actividades de “custo zero” que dão prazer e conhecimento, entretenimento e gozo e que não se compram. Ou seja, têm um grande valor, mas um pequeno preço.
Com excepção para as famílias em situações-limite – e que são cada vez mais –, que poderão vir a passar por dificuldades extremas e carências em bens essenciais, a crise pode ser uma forma para reflectir sobre o que se gasta em consumos desnecessários e permitir às crianças valorizar o que têm e perceber que não são mais felizes por terem mais roupa ou brinquedos.
Vale também a pena explicar aos nossos filhos que a crise resulta, em parte, da ganância do “quero tudo, já!”, que atingiu muitas pessoas, levando-as a pensar que eram deuses a quem tudo era devido, e que desembocou numa escalada de consumo de bens apenas para ostentar um determinado estilo de vida ou mero show-off. Também será uma boa oportunidade (dependendo da idade, claro) para explicar, com verdade, mas sem entrar em pormenores ou áreas que as crianças não compreendam, as causas e as consequências da crise e explicar a interdependência dos vários fenómenos sociais e políticos. E de como, se não lutarem por uma sociedade democrática e equitativa, de que são exemplo as escandinavas, irão ter um país empobrecido, desigual, iníquo e injusto.
Mas se, por um lado, é importante que as crianças percebam que os pais têm menos poder de compra, por outro, também devem sentir que isso não vai afectar o seu bem-estar ou as suas necessidades básicas. O impacte psicológico da crise será maior se os pais se lamuriarem e vitimizarem perante as crianças – estas têm de sentir que têm pais que conduzem o barco e que os protegem e promovem segurança.
Encaremos a crise com lucidez, esperança e vontade de a vencer. O derrotismo, a desilusão e o pessimismo só servirão para aumentar a nossa infelicidade. Para isso, já basta a própria crise…
O autor é médico e professor de Pediatria.