Portugal, terra da desigualdade
“Nada ilustra melhor o que tem acontecido do que o apuro que vivem os que hoje têm vinte e poucos anos. Em vez de iniciarem uma nova vida, cheia de entusiasmo e esperança, muitos deles confrontam-se com um mundo de ansiedade e medo. Esmagados com o custo dos estudos e empréstimos, que sabem lhes ir custar muito a pagar e que não se reduzirão mesmo que se declarem insolventes, procuram empregos num mercado de trabalho disfuncional. Se tiverem sorte de encontrar um emprego, os salários serão um desapontamento, na maior parte das vezes tão baixos que terão de continuar a viver com os seus pais. Enquanto os pais de cinquenta e tal anos se preocupam com os seus filhos, também se preocupam com o seu próprio futuro. Irão perder a sua casa? Serão obrigados a reformar-se antes do tempo? Será que as suas economias, em grande parte depauperadas pela grande recessão, serão suficientes para continuar a viver? Eles sabem que face à adversidade pode não ser possível voltarem-se para os seus filhos em busca de ajuda. Do governo vêm ainda piores notícias: são discutidos cortes no sistema de saúde, que tornarão o acesso de algum grupos aos cuidados de saúde não suportáveis. Na segurança social, também parece estarmos numa onda de cortes”.
A que país nos estaremos a referir? A semelhança é extraordinária com o que se ouve falar nas ruas, transportes e na comunicação social em Portugal. Mas não é Portugal. São os Estados Unidos da América nas palavras de Joseph Stiglitz, prémio Nobel da economia e autor do livro The Price of Inequality publicado no final do ano passado e onde nas páginas 265-266 se encontra escrito o que, em tradução livre, aqui foi reproduzido.
Tal como é apresentado no relatório da OCDE, já velho de um ano, Divided We Stand ou se preferirmos, "Divididos Nos Mantemos", a crescente desigualdade é um problema de muitos países, ou melhor, de quase todos os países da OCDE nas últimas duas décadas - honrosa excepção feita ao Brasil.
Portugal não escapa a essa tendência e, porventura, merecerá na Europa, dos 24 países sob olhar da OCDE, o epíteto de “Terra da Desigualdade”.
A vida em Portugal é tão desigual, entre quem tem mais rendimentos e quem menos possui, que os nossos coeficientes de desigualdade do rendimento disponível nos colocam sempre pior que o Reino Unido (o país mais desigual da Europa do Norte) e logo atrás dos EUA (o país só destronado na desigualdade pela Turquia, México e Chile). Mesmo quando pensamos na desigualdade de rendimentos oriundos do chamado capitalismo popular, ou seja, da suposta “democratização” dos ganhos em bolsa, também aí conseguimos ser tão maus quanto o Reino Unido e ainda piores do que os EUA na concentração de riqueza nos mais ricos.
O que assistimos em Portugal, e nos restantes países da OCDE para os quais há dados, são duas décadas de aplicação da regra "Jesse James" (ou pelo menos como foi retratado o famoso fora-da-lei na história do cowboy que dispara mais rápido que a sua sombra, Lucky Luke). Isto é, “roubar muitos pobres equivale a roubar um rico” ou, adaptando esse dizer da BD à nossa análise, para que a concentração de riqueza nuns poucos continue a aumentar é necessário que muitos percam o seu pouco dinheiro. Pois, como sabemos, a evolução do modelo de mercado de capitais tem vindo cada vez mais a aproximar-se da lógica dos casinos em que para alguns ganharem é necessário que muitos percam, num jogo de quase soma nula.
No relatório da OCDE Divided We Stand é apontada a razão do crescente aumento da desigualdade nas sociedades estudadas, e também da portuguesa: a razão reside na crescente desigualdade de salários. Os dados sugerem que a desigualdade salarial entre cidadãos assenta no facto de o progresso tecnológico ter tido impacto salarial maior nos trabalhadores com mais competências e escolaridade; que as reformas laborais, introduzindo maior flexibilidade, criaram mais empregos, mas substituíram empregos mais bem pagos por empregos mais mal pagos; que o aumento de trabalho part-time e de contratos precários contribuiu também para maior desigualdade salarial; que as novas famílias tendem a ser constituídas por pessoas com o mesmo nível de rendimentos, em vez de demonstrarem diversidade salarial, criando menor mobilidade social e de rendimento; que os rendimentos oriundos de fora dos salários, nomeadamente os obtidos nos mercados de capitais, aumentaram ainda mais desigualmente do que os com origem em salários, concentrando-se ainda mais em menos pessoas; e que, por último, a redistribuição de rendimento via actuação dos Estados tem sido diminuída em muitos países pelos cortes de benefícios sociais, pelo apertar das regras de acesso e pelas falhas na capacidade da administração de efectuar transferências para quem mais delas necessita – embora em Portugal tais práticas tenham sido temperadas nas duas últimas décadas até à crise de 2008, pelos governos de diferentes cores, as mesmas foram depois aceleradas a partir do acordo com a Troika.
Tal como o Portugal de hoje, os Estados Unidos da América deixaram de ser a terra da oportunidade para todos e passaram a ser a terra das oportunidades de uns poucos. Daí que a população norte-americana se tenha manifestado (alguns) e apoiado (a grande maioria) o grito de que nós somos os 99% espoliados pelo 1% dos mais ricos – algo que seria inimaginável nesse país há duas décadas atrás. Como Robert Reich mostra no seu documentário “Desigualdade para Todos”, premiado em Janeiro no festival de Sundance, os desequilíbrios económicos estão agora a um nível histórico sem precedentes. A desigualdade de rendimentos na América só no ano de 1928 foi tão alta como em 2007 – isto é, os anos que antecederam os dois grandes desastres económicos dos dois últimos séculos foram também os mais desiguais de sempre.Em 1978 o trabalhador típico dos EUA ganhava em média anualmente 48,302 dólares enquanto o 1% dos mais ricos ganhava, em média, 393,682 dólares ano. Saltemos para 2010. Há três anos atrás, o mesmo trabalhador típico ganhava o equivalente a 33,751 dólares enquanto o 1% do topo da pirâmide salarial atingia a casa do milhão de dólares – mais concretamente 1,101.089 dólares. Ou seja, quem menos ganhava perdeu cerca de 30% do salário auferido na década de setenta, enquanto os detentores de salários mais elevados mais do que duplicaram o seu salário. Como Reich explica, hoje os 400 americanos mais ricos têm mais riqueza do que 150 milhões de norte-americanos juntos.
Mas o que tem a ver connosco, os portugueses, o que se passa nos EUA e no resto da Europa? Eu diria tudo, pois nós não nos limitamos a copiar estilos de vida, práticas de consumo e formas de estudar. Também copiamos formas de organizar a nossa sociedade, o nosso Estado e a forma como gerimos organizações. Para Portugal os Estados Unidos da América, em primeiro lugar, e depois a União Europeia, constituem o nosso benchmarking, ou se preferirmos, numa linguagem mais crua, são aqueles que copiamos. E isso é hoje terrível para nós. Pois estamos entalados entre a cópia de uma sociedade cada vez mais desigual, a americana, e sociedades obcecadas pelos cortes e a submissão de tudo o resto ao “corte” orçamental, ou seja, as sociedades da União Europeia, contribuindo assim ainda mais para aumentar as desigualdades.
Na União Europeia, quer na Comissão quer na maioria das práticas governativas nacionais, a grande preocupação é a estabilidade do euro – mesmo para os que estão fora dele. Isso faz com que, por exemplo, se considere que hoje as grandes ameaças à estabilidade dos mercados sejam as generalizadas suspeitas de corrupção em Espanha, que colocam em causa a credibilidade do actual primeiro ministro Rajoy e da restante cúpula directiva do Partido Popular ou a incerteza eleitoral em Itália quanto aos resultados das próximas eleições. Ou seja, estamos a chegar a um ponto onde podemos imaginar que alguém (um funcionário da Comissão ou um representante de um país da União) poderá afirmar em off, a outrém, que há um preço a pagar pela estabilidade do euro e que esse preço será pago em democracia! Pagar-se-á através do fazer de conta que não se liga às suspeitas de corrupção em Espanha, na crença de que é preferível tolerar a corrupção do que colocar em causa a estabilidade do euro, ou que se houver possibilidade de manipulação eleitoral da opinião publica em Itália, tal será desculpável desde que seja para o bem da estabilidade política no resultado de maiorias claras – a bem da estabilidade do euro, é claro. O problema reside no facto de ser precisamente o Estado a única entidade que pode reduzir as desigualdades mas que hoje se auto-limita nesse papel ora com medo da hipotética reacção dos mercados ora por ter adoptado genuinamente, sem ter a noção das suas consequências, práticas de gestão indutoras de desigualdades.
Portugal vê-se hoje colhido por este modo de pensar Europeu – por enquanto maioritário – ao mesmo tempo que foi adoptando, ao longo de duas décadas, um modelo de gestão importado das melhores escolas (pois foi oriundo das Business Schools dos EUA e dos seus MBA), causador das piores práticas de gestão (com resultados à vista na viabilidade de muitos dos nossos bancos e empresas) e produzindo a financialização da nossa economia. Ou seja, uma forma de praticar a gestão que implica a necessidade de apresentar sempre altas taxas de remuneração dos investidores que detêm acções das companhias industriais e de serviços. Criando, assim, uma “lógica” que contaminou a grande maioria das práticas de gestão portuguesas. Essa contaminação passa pela necessidade de apresentar não apenas lucros, mas também de optar por os não reinvestir nas empresas para poder pagar sempre altos dividendos aos accionistas.
Noutra esfera de decisão, essa contaminação da gestão leva a que se tenha sempre de actuar com o intuito de baixar os custos do trabalho numa lógica anual, podendo para tal tomar duas opções: despedir localmente ou deslocalizar a produção para outras zonas de salários mais baixos – introduzindo a actual crise a legitimação de uma terceira opção, a qual era antes tabu, a baixa de salários.
O que é singular nesta descrição é que não se trata de decisões motivadas pela necessidade de viabilidade económica das empresas, mas sim de decisões motivadas pela necessidade de remunerar financeiramente os acionistas em percentagens, senão de dois dígitos, pelo menos bastante acima do valor dos juros bancários. Este triunfo de uma nova moda da gestão, a da Gestão Financeira da Produção, tornou-se também num modelo para a prática política, naquilo que é hoje designado por Democracia de Gestão – por oposição à tradicional Democracia Política. A Democracia de Gestão é, no fim de contas, simplesmente a adopção dos valores da prática da gestão financeira da produção à gestão dos bens públicos e da democracia, algo retratado nas diferentes práticas governativas nacionais na Europa e que levaram à aprovação de um orçamento europeu de cortes – aumentando ainda mais as desigualdades europeias. O mais curioso é que, na maioria dos casos, os próprios actores políticos não têm a consciência de estarem a agir segundo esta lógica.
A análise realizada, ao longo dos diferentes scrolls de ecrã que fez até aqui chegar, não é uma declaração de ataque a quem mais ganha ou à diferenciação salarial ou ainda ao empreendedorismo, pois só com diversidade e liberdade há criatividade e inovação e se cria riqueza. Mas também sabemos que quando a desigualdade atinge certos patamares cerceia a capacidade criativa, o empreendedorismo, a democracia e a própria liberdade de negócio. Eu não quero viver num mundo assim, nem creio que a maior parte dos que lerem este artigo o desejem, porque já viveram em mundos melhores, ou porque já experimentaram mundos piores, ou porque simplesmente acreditam na nossa capacidade individual de fazermos coisas fantásticas em conjunto. Perceber que vivemos em “Portugal Terra da Desigualdade” e quais as suas causas são apenas um princípio para darmos juntos o próximo passo na sua resolução - pois mesmo na Europa há outros modelos menos desiguais à espera de serem experimentados (e quem o sugere é o liberal The Economist).