Negociações históricas entre a Turquia e o seu “inimigo número um”

Abdullah Öcalan, líder dos separatistas curdos do PKK, está em contacto, na prisão, com o chefe dos serviços secretos. Nem o assassínio de três activistas em Paris travou o processo para solucionar um conflito sangrento.

Foto
Milhares participaram nos funerais das activistas curdas Reuters

A luta armada iniciada pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) em 1984 e as ofensivas do Exército turco contra a guerrilha, no Sudeste do país e no Norte do Iraque, já causaram entre 30 mil e 40 mil mortos (números oficiais de Ancara), centenas de milhares de deslocados e danos materiais superiores a 300 mil milhões de dólares.

Sakine Cansiz, que ajudou Öcalan a fundar o PKK, em 1978; Fidan Dogan, membro do Congresso Nacional do Curdistão, com sede em Bruxelas; e outra militante, Leyla Soylemez, foram encontradas mortas no Centro de Informação do Curdistão, em Paris, na manhã de quinta-feira, no passado dia 10. O crime terá sido cometido no dia anterior. O edifício, no número 147 da movimentada Rua Lafayette, era considerado de “alta segurança”. A porta de entrada no primeiro piso, onde as três mulheres estavam sozinhas, tinha um código de acesso digital. Foi uma operação “levada a cabo por profissionais”, segundo as autoridades francesas.

A morte de Sakine é particularmente simbólica: após a criação do PKK, esteve detida na prisão de Diyarbakir, no Leste da Turquia, um lugar que outro analista em Istambul, o britânico Andrew Finkel, descreveu como sendo “um centro de tortura”, depois do golpe militar de 1980. Quando foi libertada em 1991, acrescentou o autor de Turkey: What Everyone Needs to Know, Sakine juntou-se a Öcalan no Vale de Bekaa, no Líbano então controlado pela Síria, até se mudar para as montanhas Kandil, no Norte do Iraque, base central da guerrilha. Foi daqui que seguiu para a Europa, onde se tornou membro da ala política da organização. Estaria a residir em Paris desde 2007.

As primeiras especulações apontavam para um “ajuste de contas interno”, um homicídio encomendado por “descontentes do PKK” para sabotar as negociações que Erdogan anunciou, publicamente, no início deste mês. Baydar, colunista do diário Today’s Zaman, sorve com gosto a sopa, no restaurante que deve o nome ao grande fotojornalista Ara Güler, e dá o seu palpite: “É verdade que alguns comandantes [da guerrilha] não estarão satisfeitos com as conversas na ilha-prisão de Imrali entre Öcalan e o chefe dos serviços secretos turcos, Hakan Fidan, mas é preciso também ter em conta que Ahmadinejad, Assad e Maliki não estão igualmente interessados numa solução.”

Ou seja, Baydar suspeita que “o Irão, a Síria e o Iraque – e, provavelmente, também a Rússia – querem torpedear os esforços de Erdogan, porque sabem que quem tiver os curdos do seu lado será líder da região, uma vez que eles habitam áreas ricas em recursos energéticos”. A sua opinião é partilhada por Fadi Hakura, analista do think tank Chatham House, em Londres, numa entrevista à Bloomberg. “Se a Turquia tiver sucesso [nas negociações com o chefe do PKK], aumentará a sua influência entre os vizinhos, e indicará a um Médio Oriente multiconfessional uma via alternativa para acomodar a diversidade étnica e religiosa – esta é uma mensagem poderosa.”

Há um consenso
O medo inicial de um revés dissipou-se assim que os corpos das três vítimas chegaram a Diyarbarkir, a maior cidade curda da Turquia, em caixões cobertos com bandeiras vermelhas, verdes e amarelas, as cores do PKK. Milhares de pessoas concentraram-se no subúrbio de Batikent, entoando hinos do movimento e erguendo cartazes onde se lia “Não há vencedores na guerra, nem derrotados na paz”. Muitos aceitaram o apelo do presidente da câmara local e usaram lenços brancos em sinal de reconciliação. Não se registaram incidentes aqui nem nos funerais.

Por que é que Yavuz Baydar está optimista? “Todos aprenderam com os fracassos anteriores”, explica. “Em 2009, quando Erdogan estendeu a mão ao PKK, a organização aproveitou-se e os seus combatentes, a quem foi prometida amnistia, regressaram a casa em uniformes militares fazendo o ‘V’ da vitória. A popularidade do primeiro-ministro caiu a pique nas sondagens. Desta vez, há sinais positivos. O terreno está mais sólido.”

“Não é só Erdogan e Öcalan que apoiam este processo”, destaca Baydar. “Também o Presidente, Abdullah Gül, deu a sua bênção, assim como o BDP [Partido da Democracia e Paz, próximo do PKK]; o líder dos curdos do Iraque, Massoud Barzani, o principal grupo da oposição [o Partido Republicano do Povo, CHP] e – mais importante – Fethullah Gülen, o inspirador do influente movimento da sociedade civil [e mentor do chefe do Governo], que reconheceu ser necessário avançar a qualquer preço.”

O que é preciso determinar, observa Yavuz Baydar, “é o grau de confiança que se irá estabelecer entre Erdogan e Öcalan, de modo a que a futura Constituição possa garantir os direitos que os curdos há muito exigem como o reconhecimento da sua língua e maior autonomia política.” O que se assiste agora é a uma 'fase pré-negocial que deverá decorrer até Junho'", precisa. “Um plano de paz contemplará a libertação de activistas actualmente na prisão, um cessar-fogo e a retirada das tropas turcas das áreas curdas até ao Verão. Se nada de grave ocorrer, poder-se-á falar numa amnistia geral e na transferência de alguns comandantes da guerrilha de Kandil para o exílio em países europeus. Quanto ao líder do PKK, uma eventual libertação não é de prever antes de cinco a dez anos.”

Três conselhos
Num artigo de opinião que o International Herald Tribune publicou, Aliza Marcus, uma das maiores especialistas em questões curdas, deu três conselhos ao primeiro-ministro turco. “Primeiro, Erdogan tem de, inequivocamente, comprometer-se com um processo negociado que inclua compromissos de ambas as partes. Embora a integridade territorial da Turquia não possa ser discutida, tudo o resto deve ser.” Por exemplo, “em vez de menorizar as reivindicações culturais dos curdos, Erdogan deve demonstrar boa-fé ao encorajar reformas legais e constitucionais que eliminem cláusulas como as restrições ao uso da língua curda  nas escolas, a criminalização da crítica ao Estado turco e a definição da cidadania através do prisma da identidade turca.”

Em segundo lugar, a autora de Blood and Belief: The PKK and the Kurdish Fight for Independence aconselha Erdogan a “entender que não é possível exigir o desarmamento da guerrilha na fase inicial” do processo, embora “possa e deva exigir um acordo de cessar-fogo”. Para forçar o PKK a silenciar as suas armas, nota, o Exército turco “teria também de suspender as suas operações militares contra os rebeldes”.

O terceiro conselho de Aliza Marcus é o de que a Turquia “não deve limitar-se a negociar com uma personalidade autoritária que está na prisão, mas também com o BDP”, porque este partido, ao contrário da organização separatista, “tem reconhecimento legal e legitimidade entre os curdos, devido aos seus laços com o PKK, e porque os seus membros partilham os objectivos de autonomia e reconhecem Öcalan como líder dos curdos.” Tudo isto, conclui, faz do BDP “um parceiro negocial”, capaz de ser um mediador com o PKK e de ajudar a elaborar um pacote de reformas democráticas no Parlamento.”

Yavyz Baydar concorda com a amiga Aliza Marcus, excepto num ponto com o qual está em “discordância total”: o de que Ancara deve procurar outros parceiros que não apenas o líder do PKK. “Os responsáveis dos serviços secretos turcos mantêm contactos com Öcalan há anos”, justifica o desacordo. “Ele tem sido autorizado a ler jornais (em clips) e demonstra uma extraordinária capacidade de se manter actualizado, a julgar pelas análises que faz (um livro do jornalista Cengiz Kapmaz mostra, em pormenor, como Öcalan já tinha previsto, em 2005, as sublevações árabes [iniciadas em 2011]).”

Baydar, que mediu “a força” do líder do PKK quando este deu ordem para prisioneiros curdos acabarem com 68 dias de greve de fome em solidariedade para com o único recluso na fortaleza de Imrali, realça ainda que “uma maioria de curdos na região continua a ver Öcalan como ‘o negociador’”. Em todo o caso, conclui, “todos sabem que, em fases posteriores, o BDP, a diáspora curda na Europa e o ‘comando’ [militar] terão de ser incluídos num processo multifacetado, que terá o Parlamento como plataforma.”
 
 

Sugerir correcção
Comentar