Polónia investiga quadro de artista sueco feito com cinzas de vítimas dos nazis
Há 23 anos, um artista sueco visitou o campo de exterminação nazi de Majdanek, na Polónia. Na visita terá recolhido cinzas de um crematório.
Uma moldura de madeira e uma pintura ao centro, rectangular, com pinceladas verticais em tons chumbo. A simplicidade do trabalho é acompanhada pela legenda “as memórias e as almas de pessoas: pessoas torturadas e assassinadas por outras pessoas durante uma das guerras mais implacáveis do século XX”. A obra é de Carl Michael von Hausswolff e esteve exposta, em Dezembro, na Galeria Martin Bryder, na cidade sueca de Lund.
Tratar-se-ia de mais um trabalho do artista não tivesse o próprio sublinhado, num texto publicado no site da galeria, que era construído com cinzas recolhidas no campo de extermínio de Majdanek, em Lublin, na região sudeste da Polónia, que visitou em 1989. Desde essa data, as cinzas terão ficado guardadas num frasco até que há dois anos Von Hausswolff decidiu misturá-las com água e criar a pintura na qual disse querer lembrar as vítimas do nazismo.
A exposição acabaria por ser cancelada após a denúncia de um particular e de fortes protestos da comunidade judaica de Malmö e do Centro Simon Wiesenthal. A estas críticas juntou-se o pedido de investigação por parte do museu de Majdanek, que pretende que fique claro que, a confirmar-se que o artista utilizou as cinzas num dos seus trabalhos, estas não foram obtidas de forma ilegal.
O Ministério Público polaco de Lublin anunciou nesta terça-feira que abriu um inquérito para determinar se houve de facto a profanação ou roubo de restos mortais, crimes punidos na Polónia com penas que podem chegar aos oito anos de prisão. A porta-voz do Ministério Público, Beata Syk-Jankowska, sublinhou, em declarações à AFP, que estes crimes podem prescrever ao fim de 15 anos, mas é necessário ter em conta a gravidade dos factos. A responsável acrescentou que, para já, não há ainda provas de que Hausswolff tenha usado cinzas de Majdanek. A acusação está a actuar com base no que tem sido divulgado pela comunicação social e as autoridades polacas vão pedir apoio à polícia sueca na investigação.
Na Suécia, onde foi feita a denúncia da obra, a lei prevê que um crime como a profanação de restos mortais seja punido com dois anos de prisão. A justiça do país também lançou um inquérito, mas sublinhou que, a confirmar-se o crime, este foi cometido fora do território sueco.
“Repulsivo ao extremo”
O director do Centro Simon Wiesenthal, Shimon Samuels, classificou o quadro de Von Hausswolff como uma “profanação” e “abominação”. Salomon Schulman, uma das personalidades mais importantes da comunidade judaica sueca, disse, por sua vez, em declarações à televisão do país, que o quadro é “repulsivo ao extremo” e que irá boicotar a galeria em que esteve exposto. “Quem sabe? Talvez algumas das cinzas sejam de familiares meus. Ninguém sabe para onde foram deportados todos os irmãos da minha mãe e os seus filhos e os meus avós”, escreveu depois Salomon Schulman no jornal Sydsvenskan, citado pela BBC.
O proprietário da galeria de arte Martin Bryder chegou a convidar Salomon Schulman para visitar a exposição. “O sr. Schulman já afirmou nos jornais que não iria vê-la [a pintura], mas, se o fizesse, talvez tivesse uma opinião diferente”, disse na altura à agência noticiosa polaca. Porém, Martin Bryder decidiu cancelar a exposição devido aos protestos e publicou uma explicação sobre a decisão no site da galeria.
Dados do museu do campo de extermínio de Majdanek indicam que durante a ocupação nazi, entre 1941 e 1944, foram ali mortas perto de 80 mil pessoas, 60 mil delas de origem judaica. Morreram em câmaras de gás, executadas ou vítimas da fome e frio e doenças. Estima-se que nos anos em que esteve activo o campo tivesse tido um total de 150 mil prisioneiros. O campo de Majdanek é um dos mais bem preservados, apesar das tentativas nazis de destruírem as provas de extermínio. Os seus crematórios estão praticamente intactos.
Onde está a polémica?
A questão da utilização de cinzas humanas como material para a criação de uma obra de arte está no centro da polémica, mas para Pedro Lapa, director do Museu Berardo, o “trabalho artístico é sempre um trabalho de profanação”. Pedro Lapa recorre a trabalhos de artistas como o francês Jean Dubuffet (1901-1985), que utilizou materiais nobres da pintura e os “transformou numa espécie de terra, lama, para se aproximar de coisas quotidianas e degradadas” para explicá-lo. Aponta ainda Anselm Kiefer (1945-), que utiliza cabelo e cinzas, materiais que “têm sentidos simbólicos historicamente conotados com o Holocausto”.
“O artista pode questionar isso. O trabalho pode ser profanar e dar-lhe outro sentido àquele que é sagrado e consagrado como monumento”, argumenta o director do Museu Berardo, para quem se deve também questionar se a comunidade judaica tem “uma espécie de jurisidição sobre todas as formas de representação da sua tragédia, sob pena de reflectir ao inverso o inimigo”.
E o quadro de Von Hausswolff, a sua simplicidade mas materialmente tão forte, é arte? “O pior que podemos fazer é esquecer esse momento tão traumático da história ocidental. Todas as possibilidades de interrogar essa questão são permanentes. É sempre arte”, responde.
Delfim Sardo, curador de arte, sublinha que a “tónica escatológica numa grande corrente do século XX é evidente”. “A arte é um universo de ficção. Pouco importa se as cinzas são verdadeiras ou não. Há questões que se prendem sobre a ética artística. O artista deve pensar sobre o que está a representar e como”, defende.
Em termos genéricos, Delfim Sardo considera que “há uma questão de liberdade artística que não pode ser tocada, não quer dizer que é para tudo”. Reforça que grande parte da arte do século XX foi feita numa primeira parte como um “teste ao limite da representação e o horror tem sido um desses limites permanentemente testados”. “Há uma prática de modernidade de jogar sempre entre o escândalo e o teste. E isso faz parte das práticas artísticas modernas”.
O curador de arte justifica o argumento com uma peça do artista indiano Anish Kapoor concebida para a Bienal Internacional de Óbidos, em 1993. Anish Kapoor fez uma intervenção com duas peças de mármore numa igreja abandonada do concelho. Durante a colocação das peças foram descobertas ossadas humanas que ali ficaram e fizeram parte da obra. O trabalho passou a chamar-se Black Stones, Human Bones. “Ninguém levantou polémica”, lembra.
“Quando se usam cinzas de vítimas do Holocausto estamos a entrar no domínio do simbólico. A utilização de cinzas é forte sejam cinzas ou não, o jogo simbólico está sempre lá”, reforça. “Sabemos que este tipo de intervenções, que jogam com simbolismos, correm riscos. O artista está no fio da navalha. Provavelmente essa polémica passa a fazer também parte da obra”.
Notícia actualizada às 17h33 com declarações de Pedro Lapa, director do Museu Berardo, e Delfim Sardo, curador de arte