Poucas polémicas na história da literatura portuguesa terão ficado tão célebres como a que opôs Vergílio Ferreira a Alexandre Pinheiro Torres nas páginas do Jornal de Letras e Artes, no começo de 1963, a propósito da publicação, no final do ano anterior, de Rumor Branco, o romance de estreia de Almeida Faria (n. 1943), então com 19 anos. Para assinalar o cinquentenário da primeira edição, a editora Assírio & Alvim acaba de reeditar o livro, acrescentado dos textos dessa polémica: uma troca de argumentos que, entre réplicas e tréplicas, discute acesamente a filiação de Almeida Faria à luz da grande divisão entre existencialistas e neo-realistas.
Pinheiro Torres, que no texto que dá origem à polémica reconhece o talento do novo escritor, critica a obra pela opção estética escolhida, a "existencialista", radicando-a em Vergílio Ferreira (autor que prefaciara Rumor Branco) e nomeadamente em dois dos seus romances, Aparição (1959) e Estrela Polar (1962). Uma semana mais tarde, Vergílio Ferreira riposta no mesmo jornal; a polémica continuaria durante mais três semanas. O seu impacto foi tal que deu lugar a uma animada "discussão pública" sobre o neo-realismo no pequeno meio cultural (e académico) português.
Curiosamente, Almeida Faria, o autor do livro criticado, não participou na polémica nem no debate público. "Passava-me ao lado, não me dizia respeito", confessa ao Ípsilon. "Nessa altura eu desconhecia os neo-realistas portugueses. Li com prazer, não recordo se antes ou depois do Rumor Branco, os neo-realistas italianos, sobretudo Os Atalhos dos Ninhos de Aranha, do Calvino da fase inicial. Não havia da minha parte intenção de romper com essa escola literária e política porque, simplesmente, mal sabia o que era o neo-realismo."
Foi sobretudo no suplemento literário do jornal Diário de Lisboa, e na revista O Tempo e o Modo, que continuou uma discussão mais alargada. Nela participaram nomes como Nuno de Bragança, João Rui de Sousa, Eduardo Prado Coelho, José Fernandes Fafe ou Gastão Cruz. Mas era claro que o centro (ou a razão) da polémica era mais o abandono do movimento neo-realista por Vergílio Ferreira do que propriamente a estética "existencialista" de Rumor Branco. Talvez o facto de o autor de Aparição começar a ter "discípulos" assustasse os mais acérrimos defensores do neo-realismo. Ainda a esse propósito, o poeta Armando Silva Carvalho - cinco anos mais velho do que Almeida Faria e que viveu também essa discussão - sublinha, em declarações ao Ípsilon, que, naquele tempo em que o lápis da censura tinha muita força, a teoria literária se fazia ao sabor das dissidências da ortodoxia do Partido Comunista, o único que organizava a luta anti-fascista. "A polémica à volta do Rumor Branco era, no fundo, uma querela, uma espécie de ajuste de contas que a deserção ruidosa [do neo-realismo] do Vergílio Ferreira tinha provocado. O próprio Vergílio viria a escrever mais tarde [1994], em Conta-Corrente, no seu estilo que se tinha tornado um tanto grosso: ‘Começou com o Pinheiro Torres. Dei-lhe troco. Retrocou ele. Mandei-lhe a bola outra vez. E nessa altura a comunada entrou no barulho.' A ele sabia-lhe bem, no fundo, ser o ‘mestre existencialista' da nova geração."
Justamente no mesmo ano (1994) em que Vergílio Ferreira se refere à polémica nestes termos, também Alexandre Pinheiro Torres, em entrevista ao JL, vem dizer que a sua motivação fora ideológica: "Eu mandei-lhe [ao Vergílio Ferreira] umas biscas e recomendei-lhe que tomasse calmantes, já que só falava nas suas angústias em vez de tratar os assuntos que atravessavam o Portugal contemporâneo."
O escritor Mário de Carvalho, que nesses anos de greves estudantis (1961-62) se envolveu na luta política, recorda que o regime tinha sido então fortemente sacudido; para aqueles que viviam esses tempos, eram necessários estímulos. "O regime tinha estalado, mormente pelo lado da elite universitária. Nunca mais recuperaria. Muitos de nós viviam esses tempos como ‘dias tumultuosos', a precisar de estímulos mais ou menos panfletários. Outros entendiam que os novos tempos exigiam um exercício de resistência que impusesse transformações nas próprias formas literárias. Alguns dos que se debatiam entre escolhas conflituantes e paradoxais, como eu, tiveram a felicidade de reconhecer a qualidade literária onde ela emergia com uma fulgurância de júbilo."
Almeida Faria descreve o ambiente cultural e académico da época como muito voltado para o combate ideológico, um combate que tinha sobretudo lugar em tertúlias - que ele quase não frequentava por ser estudante-trabalhador. Por essa altura, teve a oportunidade de fazer, nas férias, um curso em Cambridge; de caminho, passara por Paris, onde gastou dias inteiros nos museus e nos cinemas, vendo filmes que a censura portuguesa proibia. "No ‘regresso a casa' tudo me parecia soturno, anacrónico, encolhido, de uma tristeza insuportável em que eu antes não reparava por falta de termos de comparação. Portugal vivia uma agonia, uma asfixia lenta e colectiva."
O seu grito contra a opressão cultural foi a escrita do romance, muitas vezes durante as aulas do curso de Direito, mas sem qualquer pretensão de vir a agitar as águas da maneira que o fez. "Escrevi Rumor Branco quase em transe, possesso, para não desatar aos berros ou a dar pontapés no universo. Foi um refúgio, a alternativa possível contra a clausura cultural", diz ao Ípsilon. "Queria, como os adolescentes do meu tempo, infringir os códigos estabelecidos, mas não esperava reacções de nenhum tipo. Mas ainda mais violentos do que o ataque do Pinheiro Torres foram os da Direita, até na rádio, contra aquele atentado à língua portuguesa e, logo, à Pátria."
"Apetecia saber trechos de cor"
À parte a polémica, a estreia literária de Almeida Faria foi uma forte pedrada nas águas da literatura portuguesa. Numa altura em que em França se teorizava e fazia o culto do nouveau roman, Vergílio Ferreira apressou-se, no prólogo, a dizer que "formalmente Rumor Branco tem que ver, evidentemente, com o novo romance". Mas, para outros, aquele era mais um romance novo do que um novo romance. Dos nouveaux romanciers franceses, Almeida Faria lera, à época, apenas o começo de O Vento, de Claude Simon; só depois virá a conhecer Robbe-Grillet e Michel Butor. Anos mais tarde, Eduardo Lourenço escrevia: "Desde Álvaro de Campos que uma tal dilacerante litania da solidão (e seu inverso fervor) não me chegava aos ouvidos."
Quisemos saber como, à época, o escritor Mário de Carvalho leu esse livro: "Rumor Branco era uma extraordinária experiência de linguagem, com um domínio superior da frase, um ritmo ou uma toada que respondiam à melhor poesia portuguesa, uma evocação magnífica (e diferente) do Alentejo e do Sul, que nos insinuava também outra dimensão da prosa. Apetecia saber trechos de cor e foi o que aconteceu, numa altura em que a memória me era mais pronta e fiel. O jovem autor português era manifestamente mais dotado que certos praticantes franceses, alguns estimáveis, do nouveau roman. Quanto ao existencialismo - e Vergílio bem consentiu na brasa a essa sardinha -, só com excesso de boa vontade."
Para o poeta Armando Silva Carvalho o livro de estreia de Almeida Faria foi uma obra revolucionária: "Rumor Branco foi na época um grito de juventude literária que trouxe à flor da escrita o tumulto problemático do indivíduo, as sua contradições enquanto sujeito, os seus limites interiores, os negócios da alma e da morte, enfim, um mundo que fora colocado entre parênteses pela necessidade mais premente da luta de classes e do primado do colectivo. Mas o livro foi igualmente importantíssimo pela revolução formal que representou e cuja importância só encontra paralelo nessa época com a publicação de Os Passos em Volta de Herberto Helder."
É de saudar que, graças ao cinquentenário da sua publicação original, e quase 20 anos depois da última edição, os leitores possam voltar a ter acesso a uma obra decisiva no caminho que a ficção portuguesa trilhou.
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