Estava muito bem na sua pele, tinha aperfeiçoado a arte de ser português. Não se esquece Fernando Távora. Às vezes quando devíamos sair para Coimbra de manhã cedo, ficava a dormir. Íamos então buscá-lo à sua casa na Foz. Távora saía para a rua em pijama com uma satisfação indescritível. Estava no seu bairro, que era toda a cidade virada para o mar. Era rural no Porto e urbano na quinta de Guimarães. Era um verdadeiro bairrista: o mundo tinha origem aqui.
Para Távora, Lisboa era o começo do Rio de Janeiro, uma cidade da expansão, mais próxima fisicamente. Uma projecção da história portuguesa mais do que um sítio real; um palco mais do que um lugar. A iconografia era amada: o poema épico, o Tejo e a sua terrivelmente assustadora Torre de Belém. Sem firmitas e sem telúrico, Lisboa era o espaço descrito na Mensagem, que declamava aos 14 anos, com a farda da mocidade portuguesa.
Távora projectou um arcaísmo oitocentista, ruskiniano, para o centro do desejo de ser modernista no Porto. Era um homem antigo, pré-moderno: prezava acima de tudo a relação com a terra. Mas era Teixeira de Pascoaes a negociar o futuro com as várias cabeças de Pessoa. Porque Távora, conservador, nacionalista, saudosista, é também a figura tutelar da Escola do Porto, progressista, esquerdista, modernista. Quando Távora permite que Picasso e Le Corbusier irrompam na sua formação académica, a história precipita-se. Participando nos vanguardistas Congressos Internacionais de Arquitectura Moderna, conhece Le Corbusier em 1951 e apresenta o Inquérito à Arquitectura Popular a Salazar, em 1958. É a "terceira via" em campo.
Com esta abrangência, Távora garante uma matriz para a Escola do Porto, antes e depois do 25 de Abril, principalmente quando a Revolução esmorece. A aversão à tecnocracia e à especialização une os espectros políticos e funda uma sensibilidade.
É isso que se pode ver na exposição Fernando Távora. Modernidade Permanente, coordenada por Álvaro Siza e comissariada por José António Bandeirinha, em Guimarães, Capital Europeia da Cultura. Convidado para a conferência, falei sobre a viagem de Távora à América, em 1960, a partir do Diário que escreveu e que será agora publicado. A certa altura, num desencontro fatal com os Estados Unidos, afirma a necessidade de ir ao México para estar perto de "gente da sua raça". Decide ficar para ver "coisas pré-lusitânicas" e sente-se próximo de casa no regresso de Teotihuacan, numa camioneta a abarrotar de "astecas".
Chegados a Coimbra, tantas vezes Távora agarrava-me pelo braço e indicava-me uma rapariga ou o detalhe de uma porta por onde a rapariga saía, a vida a acontecer. Conhecia a felicidade; esse era o seu maior anacronismo.
Esta crónica foi publicada na Revista 2 a 25 de Novembro