Falar de etnias ainda é tabu
Não sabemos quantos portugueses pertencem a minorias étnicas e raciais. Oficialmente, retratam-nos como “brandos” em matéria de discriminação. Não ligamos à cor da pele, nem à etnia?
Há uns tempos, numa cerimónia oficial, o presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras, Carlos Miguel, foi puxado à parte por um político. Era para lhe dizer ao ouvido que também tinha raízes ciganas e dar os parabéns por ele, Carlos Miguel, o assumir. Foi pelo menos o segundo dirigente político a falar em segredo da sua origem ao homem que em Torres Vedras era conhecido como o filho do Carlos cigano. Vergonha? “As pessoas têm as suas razões”, responde na sala envidraçada da autarquia num dos poucos dias cinzentos de Fevereiro.
Quando há uns anos trabalhava como caixa na cadeia de supermercados Lidl, Ana Tavares, 26 anos, analista laboratorial, ouvia de vez em quando a pergunta: “De onde és?” E quando ela respondia - “Sou portuguesa” - insistiam: “Não, não, de onde és?” Em Portugal há quem prefira deixar a etnia para a esfera privada.
É um assunto de que não se fala, assim como não se discute abertamente o tema raça, mesmo quando se pergunta a um português que se toma como estrangeiro por causa da cor da pele: “De onde és?” Quantos grupos étnicos e raciais existem em Portugal? Quantos portugueses são brancos e quantos pertencem a minorias étnicas ou raciais? Se o Censos lhe pedisse para especificar a sua origem, raça, grupo étnico, cultura escolheria qual? Escolheria sequer?
Este é um dos temas que mais dividem entidades oficiais, académicos, activistas, organizações de combate à discriminação. De um lado, os que são contra a recolha de dados e tratamento estatístico, ou seja, os que acreditam que fazer esta divisão populacional, como o fazem, por exemplo, os Estados Unidos ou o Reino Unido, reforça estereótipos. Do outro, defende-se que só com estatísticas é possível tirar a fotografia completa - e rigorosa - de uma população, da discriminação e das desigualdades.
No ano passado, um grupo de peritos da Organização das Nações Unidas (ONU) para as pessoas de descendência africana esteve em Portugal e deixou a recomendação, que planeia entregar formalmente ao primeiro-ministro Pedro Passos Coelho para o mês que vem: Portugal devia fazer a recolha de informação “detalhada e fidedigna” sobre os “descendentes de africanos”. Mas a recolha não se cinge àquela que será a minoria mais expressiva em Portugal. Ainda esta semana, o Comité da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial sublinhou a ausência de recolha de dados sobre minorias em Portugal como uma das suas preocupações, documento que enviou ao Alto-Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), em sequência de uma reunião em Genebra no mês passado.
A questão é essencialmente política e ideológica. A Constituição não permite a recolha de dados ligados à raça e etnia. E a Lei de Protecção dos Dados Pessoais também o proíbe. Mas Rosário Farmhouse, a alta-comissária do ACIDI, reconhece, porém, que “para casos excepcionais” o primeiro-ministro poderia autorizar essa recolha. Só que a comissária é contra a recolha de dados “pelo tom da pele” porque os “malefícios” que criaria são maiores do que “as vantagens": “Evitamos criar mecanismos de catalogação. Não faz sentido mudar a política.”
Portugal não é o único país europeu que não tem dados sobre minorias. No balanço dos dez anos da Directiva Europeia para a Igualdade Racial, a Fundamental Rights Agency (FRA) da União Europeia diz justamente que um dos grandes obstáculos para o desenvolvimento de políticas de inclusão a nível europeu tem sido a ausência de números, essenciais para tirar a fotografia das desigualdades em diversos sectores. Apenas o Reino Unido, Irlanda, Holanda e Finlândia fazem, “aparentemente”, essa recolha, escreveram, proibida em países como Portugal, França e Alemanha
Quando esteve em Lisboa em Maio, a chefe do grupo de trabalho da ONU encontrou-se com Rosário Farmhouse e representantes de outras instituições. Mirjana Najcevska ouviu muitas vezes o argumento de que se as raças não existem (são uma construção social), então porquê fazer essa divisão oficialmente?
A questão, diz, é que, no caso das pessoas de descendência africana, muitas se queixam de que não têm acesso à “redistribuição de recursos e de poder": “Como é que se prova isto sem haver números? A ONU e outras agências de direitos humanos aconselham à recolha de dados porque há, de facto, um problema de visibilidade e de desenvolvimento das políticas apropriadas.” E critica fortemente a ausência de dados, dizendo que é o sintoma de que “ou não se quer lançar luz sobre o que acontece às pessoas ou não se quer abordar as políticas públicas necessárias”.
Tem-se resistido debater o tema da recolha de dados em Portugal, sobretudo em termos políticos, muito pelas questões que levanta. Fazê-lo implica abordar a relação que os portugueses têm com as questões raciais e étnicas. Implica também debater se a sociedade tem enraizadas práticas de discriminação, algumas subtis, outras mais explícitas, num país em que os discursos oficiais retratam os portugueses como “brandos” nesta matéria. Segundo informações do ACIDI, há apenas três acórdãos da Procuradoria-Geral da República que aplicaram o crime de discriminação racial.
Os dados fariam pensar que a discriminação não é um problema. Mas vários estudos mostram que as queixas não podem servir de bitola, uma vez que há muita gente que tem medo de queixar-se e que muitos não estão sequer informados sobre o que constitui discriminação. Esse é, aliás, outro ponto que o recém-entregue documento da ONU aponta, mostrando-se ainda preocupado com a possibilidade de discriminação policial e judicial - pela sobrepopulação de estrangeiros nas prisões, pelas queixas que existem de aplicação de penas mais elevadas a minorias.
No seu escritório na Baixa, a procuradora geral distrital de Lisboa Francisca Van Dunem, 56 anos, diz com uma voz sempre tranquila que o assunto não está na agenda política por existir “uma espécie de contrapreconceito”. Sentada a uma mesa redonda, com maçãs numa fruteira, explica: “Há um discurso oficial e institucional de que os problemas de discriminação não se põem com os portugueses. Isso acaba por paralisar qualquer possibilidade de debate nessa matéria”, diz a antiga responsável pela Direcção de Investigação e Acção Penal de Lisboa.
É um tabu? “No discurso político a questão racial continua a ser tabu, manifestamente”, responde. “Percebo que a abordagem não é fácil. Construiu-se a ideia de que os portugueses eram propensos à miscigenação, misturavam-se culturalmente e que, portanto, isso era um indicador de que não discriminavam racialmente. Eu digo ‘não’.”
A procuradora, a ocupar um lugar de chefia numa área que por natureza é conservadora - a justiça -, nunca sentiu discriminação no local de trabalho e não acha que a justiça portuguesa discrimine, mas não tem dúvidas quanto ao facto de haver racismo em Portugal. "Falta a abordagem franca da questão. Era importante encararmos isso como um problema que se calhar nem é assim tão difícil de resolver. Há uma componente educacional, mas é preciso investir nela. Há coisas que não se colocam nem se tiram da cabeça das pessoas, que foram criadas em determinados contextos sociais em que havia grupos a quem eram associadas coisas malsãs. Desde logo as expressões do quotidiano: negra vida, negra sina, vida de negro... Não há nenhuma associação do preto ao belo, tudo aquilo que se encontra em termos de linguagem é mau. Há algumas que têm origem sociológica, vêm do tempo da escravatura, mas há outras que não.”
O tema do racismo tem sido debatido, diz Mamadou Ba, da direcção do SOS Racismo, mas fica circunscrito à academia “porque as nossas elites convenceram-se de que ultrapassámos o racismo no dia-a-dia”.
Minutos depois de participar numa manifestação de apoio à Grécia em Lisboa, Nuno Santos, 34 anos, sociólogo, activista e músico (conhecido como Chullage), descreve o tom do debate sobre o tema como “um marasmo racial”. Acusa as entidades oficiais e os partidos políticos de não “debaterem o racismo a fundo” porque esta “é uma questão que fragmenta o eleitorado”.
Carlos Miguel tirou o curso de Direito e acabou por se sentir “especial” em vários momentos da vida porque estudou e saiu do percurso de vida que o estereótipo traça para os ciganos. O filho de um casamento consumado às escondidas nos anos 1950, por a mãe não ser cigana, diz que teve “a sorte” de ter em casa o apoio familiar para estudar, tornando-se na prova da sua convicção, a de que “na escola somos todos muito iguais”.
Critica o Estado por não desenvolver políticas de integração “sérias”. Dá como exemplo a recente Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, em que das “16 ou 18 pessoas” de uma comissão “estão previstas duas de origem cigana e escolhidas pelo ACIDI": “Isto traduz o que se pensa: estes gajos são escolhidos ou não têm possibilidade de se expressar.”
Nuno Santos acusa mesmo as entidades oficiais de paternalismo e o ACIDI de se centrar nas questões da imigração, deixando de fora “os milhares de afro-descendentes que não entram nos números”. À mesa de um café no Rossio ao fim da tarde, diz: “Invisibilizaram os negros que não aparecem nas estatísticas, não são imigrantes, mas são tratados como tal.”
O activista critica: “Portugal institucional não tem diversidade nenhuma.” Exemplo: “Muitas instituições dedicadas a essas questões usam as minorias até ao papel de mediador, mas no papel de desenhar os programas são os portugueses brancos que estão à frente. Precisamente porque o poder não se partilha. Não há discussão aberta no sentido de contribuirmos para essa agenda.” Mesmo as associações africanas “passaram a ser associações de imigrantes” - de Cabo Verde, da Guiné, etc. - e “os ecos dos programas institucionais para a imigração”, deixando de lado as questões da discriminação. Falta-lhes uma “agenda própria” para pressionar os partidos políticos.
À frente de duas associações activistas, a Plataforma Gueto e da Khapaz, Nuno Santos não tem dúvidas de que “a excepção portuguesa” não é excepção nenhuma. “No dia em que houver números de quantos negros moram na freguesia X, nós conseguimos sentar negros ou pôr a nossa agenda em cima da mesa. A raça continua a ser determinante no acesso aos recursos.”
Carlos Miguel também tem a certeza de que, apesar de não se manifestar de forma violenta, há xenofobia em Portugal. “Não há relação de igual para igual. Eu para ser igual tenho de ser duas vezes melhor. Tenho de provar o dobro.”
Sentiu esse peso, dentro do próprio PS, “que criou um movimento para que não fosse eleito”, e se alastrou à oposição, transformando a campanha eleitoral em algo “entre a ética e a etnia”. “Muita propaganda da oposição do boca-a-boca era: querem que vá para lá um cigano?”
Como tudo neste tema, também as palavras que se escolhem são polémicas. A simples ideia de minoria coloca os grupos de que se fala em desvantagem. “Raça” sublinha uma diferença biológica que apenas existe socialmente.
"Etnia” diferencia. “Cultura” exotiza, e anula. “Comunidade” retira a heterogeneidade. Há quem diga que “raça” é uma “palavra maldita”, vinda do tempo do colonialismo e usada para dominar, como Narana Coissoró, 80 anos. Escolhe cultura por ser “integradora”, diz o ex-líder parlamentar do CDS, professor jubilado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, e presidente do Instituto do Oriente.
Mas não tem dúvidas de que é “importantíssimo” ter dados sobre as diferentes “culturas” em Portugal. Pediu, de resto, na Casa de Goa, que dirige, para se fazer esse levantamento para os goeses. Defende que, “quanto mais soubermos sobre o nosso país”, melhor. “É extremamente importante saber quais são as minorias, de onde vêm, que importância têm, até porque ‘minoria’ é um termo genérico.” Se quiser saber quantos ciganos existem em Portugal, Carlos Miguel “manda uns números para o ar”. E se quiser saber qual o nível de literacia, de escolaridade, quais os percursos profissionais dos ciganos, em que áreas são discriminados, não sabe. A recolha, diz, “é determinante”, desde que seja feita com “a máxima reserva” para que “não se torne um instrumento estigmatizador, mas informador”.
Francisca Van Dunem concorda com a recolha de dados, desde que feita por instrumentos como o Censos, “um elemento neutro”, que “cobre a população por inteiro” e desde que não seja individualizado.
Diz-se flexível nesta matéria, acrescentando que era necessário o Estado reflectir sobre o momento exacto para o fazer e o impacto que poderia ter. Ter dados por ter não adianta, é preciso tratá-los - e tratá-los com seriedade.
Mas compara-os à situação das mulheres sobre quem a recolha de dados permitiu detectar desigualdades de género. Seria interessante perceber por que é que determinado grupo, por exemplo, não acede a níveis de ensino superior: “É pela condição económica, por dificuldade de outra natureza, de inserção? Ou por que é que, existindo não sei quantas pessoas com aquela origem com níveis de escolaridade superior, não têm trabalhos compatíveis com a sua escolaridade?
Sabendo que a discriminação existe em termos sociais e que possa influenciar os resultados da condição de certos grupos, então é importante ter dados sobre a maneira como esses grupos acedem às conquistas básicas do Estado Social. Não podemos trabalhar nisso com completa neutralidade, como se houvesse um véu de ignorância em relação ao passado”, que foi “marcado por uma lógica discriminatória”.
Sendo assim, por que é que esta é uma questão tão polémica? Porquê a resistência das entidades oficiais, de académicos, de técnicos, quando até as próprias pessoas que pertencem a minorias, entrevistadas numa grande sondagem da União Europeia-MIDIS, concordam com a recolha de dados étnicos - 65% no geral, 62% em Portugal? Mesmo para entidades como o SOS Racismo o tema não é consensual por causa da possibilidade de “instrumentalização dos dados” e “cristalização dos preconceitos e estereótipos”, riscos que Mamadou Ba reconhece existirem quando se publicam este tipo de estatísticas.
Apesar disso, defende que “só com base em estudos empíricos não se pode estudar a questão do racismo, um comportamento social muito mais subliminar.” Exemplos: “Por que é que não temos pessoas de origem africana em lugares de destaque? Por que é que do ponto de vista da habitação não há mistura? Por que é que os descendentes de africanos não têm um ciclo académico ascendente?” Isto, diz, prova que “o racismo não se resolve só com boas intenções”.
A especificidade portuguesa é muitas vezes apontada como um dos motivos para não ter dados. Em Genebra, na reunião que teve a meio de Fevereiro com o Comité da ONU, Rosário Farmhouse evocou a ditadura e a racialização que o regime de Salazar fazia.
Disse mesmo que, a acontecer, iria “provocar um choque profundo na sociedade portuguesa”.
Jorge Malheiros, geógrafo e investigador do fenómeno das Migrações no Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, lembra que, embora sempre tenha existido miscigenação em Portugal, do século XIX a 1970 “passámos por um período em que havia muito poucos estrangeiros”. Ou seja, “a questão de um Estado-nação baseado em vários grupos raciais é recente” - a grande vaga migratória vinda de África foi depois do 25 de Abril e, mais tarde, nos anos 1990, a segunda vaga trouxe sobretudo brasileiros e cidadãos da Europa de Leste.
Embora não existam números em Portugal, sabe-se que a maior minoria racial portuguesa será de origem africana (Cabo Verde, Guiné, Angola e Moçambique, estes dois últimos com menor expressão) e que a única minoria étnica nacional considerada oficialmente em Portugal são os ciganos.
"Tendencialmente sou contra a racialização das estatísticas”, diz Fernando Luís Machado, sociólogo e investigador do Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa, que há anos se dedica a estas questões, e complexifica, dizendo que é difícil ter uma posição taxativa em relação ao tema da recolha de dados, nomeadamente pelo Censos. “Há muitos efeitos perversos nas lógicas sociais e nas decisões institucionais. Algo que é decidido de forma benigna pode ser apropriado negativamente.
Os discursos xenófobos e racistas podem agarrar-se às estatísticas” - e arranjar argumentos para suportar pontos de vista, como, por exemplo, “vejam como as minorias estão dependentes dos subsídios”. Mas não só: como instituição legítima, o Estado, ao implementar sistemas de identificação racial, “está a pôr-se a jeito para que as pessoas pensem em termos raciais”. É ainda contra por razões “de princípio ético” e “de ordem cognitiva": “É cada vez mais difícil ter um sistema de categorização.” Porque há cada vez mais “miscigenação” e porque “nenhum sistema consegue captar toda a variedade de pertenças étnicas”.
Rui Marques, antigo comissário (2005-2008) do ex-ACIDI (na altura era ACIMI), é bastante veemente na sua posição “completamente contra” o registo e recolha de dados, que “têm muitas vulnerabilidades”, a começar pelo próprio sistema de classificação, e cujas “vantagens são muito menores do que os riscos”. A acontecer, iria “abrir uma caixa de Pandora cujo resultado final é uma tragédia”.
Depois há problemas de base no sistema de classificação, argumenta: “Pessoas que têm várias origens, classificam-se como? E quem as classifica?” Vários países adoptaram expressões como “raça mista”, ou então a possibilidade de se escolher mais do que uma raça sem dar prioridade a nenhuma delas - é assim nos EUA e no Reino Unido. E a classificação é sempre feita pelos próprios - não por técnicos.
Mesmo que as pessoas se categorizassem de forma diferente - ou seja, dois irmãos podiam escolher diferentes raças e etnias -, o que conta é “a forma como se vêem a si próprias”, diz Maria Margarida Marques, socióloga das migrações na Universidade Nova de Lisboa. E teríamos sempre “uma ideia de como a sociedade portuguesa vive a sua diversidade”. Depois é ainda importante “aceitar que a população é heterogénea em termos raciais”, acrescenta.
Nem totalmente a favor, nem totalmente contra, Jorge Malheiros defende que no Censos poderia haver uma resposta facultativa, como existe para a religião, condicionando depois a utilização dos dados a análises feitas por instituições “idóneas”, “evitando a utilização para outros fins”.
Isto porque podem existir “perseguições xenófobas e racistas”, nomeadamente em “determinadas áreas em que se identifi ca maior concentração de determinada população”.
De resto, é possível saber, “por via indirecta, algumas coisas sobre determinados grupos étnicos”, mas menos sobre os ciganos - por estarem sedentarizados em Portugal há muitos anos, 500. Com a informação que se tem neste momento, sabe-se, por “suposição”, “não sustentada em base sólida”, que tipos de défices existem em determinados grupos e em que áreas o Estado deve intervir.
Há minorias que estão em situação de pobreza, têm maior taxa de insucesso escolar, maior dificuldade em encontrar emprego, em ter acesso à justiça, à saúde? Estas são perguntas “muito mais difíceis” de responder sem os dados, reconhece Fernando Luís Machado. Mas, defende, não interferem “em nada” com as políticas públicas, que em Portugal “não são racializadas”. “Há um acesso universal em função do rendimento, e as políticas públicas devem ser baseadas em critérios sociais e não étnicos. E Portugal até tem uma política bastante inclusiva, mesmo os imigrantes ilegais podem aceder à saúde.” Depois há inúmeros estudos sociológicos, “pesquisas directas com amostras representativas da população” que “chega e dispensa a racialização das estatísticas”. “É importante saber se há racismo, que expressões assume, mas contar o número de pessoas não.”
Como Fernando Luís Machado, também Rui Marques defende que os estudos qualitativos e quantitativos “são mais do que suficientes”. Diz mesmo que a “tese de que temos que registar dados” para identificar as necessidades e resultados de políticas públicas “tem um risco elevadíssimo”. “A História mostra que deu sempre maus resultados”, defende, dando exemplos mais radicais como o Holocausto.
Gabriel Toggenburg, investigador da FRA, contesta o argumento do mau uso das estatísticas, porque “os dados relativamente a tudo podem ser mal interpretados”. “Isso faz parte do jogo político.” Embora as motivações de quem resista sejam “honestas”, considera, a verdade é que no fundo esta é, ao mesmo tempo, uma resistência em ver “fenómenos desagradáveis”, como problemas de discriminação no acesso à habitação, ao emprego, à educação.
Margarida Marques concretiza: “Se calhar iríamos ficar com as bochechas bem vermelhas se soubéssemos o que se está a passar com a inserção dos portugueses negros no mercado de trabalho em Portugal.”
Sobre a comunidade cigana, Carlos Miguel não tem dúvidas de que os números “são péssimos”. "Sei que os números são péssimos, na educação, empregabilidade, habitação, etc. Mas ver que políticas se podem desenvolver para alterar esses números é que deve ser objecto de discussão”.
Hoje existem sobretudo problemas de relações raciais em Portugal, defende Margarida Marques, e isso está espelhado nos fóruns da Internet, por exemplo, onde é comum leremse ofensas racistas e xenófobas.
Daí que seja importante, até mesmo em termos pedagógicos, haver outro tipo de estatísticas que separem a raça da imigração já que actualmente quando se fala de diversidade são os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que servem de base à análise ou os dados do Censos que remetem para a nacionalidade dos pais. “O próprio ACIDI usa as estatísticas do SEF. Continuamos a contribuir para esta ideia de que ‘são negros, portanto não são portugueses’. Do ponto de vista estatístico, é importante cortar com esta tendência.”
Se o Censos poderia ajudar a identificar determinadas populações e as áreas de maior necessidade de intervenção, também não se pode cair na armadilha de achar que todas as minorias são carenciadas, lembra Margarida Marques.
Ana Tavares não tem dúvidas de que se existissem estatísticas em Portugal elas mostrariam outra fotografia dos portugueses descendentes de africanos - como ela gosta de se identificar - e discorda de que os dados reforçariam estereótipos porque “eles já existem”. Pelo contrário: “Desmistificaria os estereótipos porque mostrava uma realidade sobre os descendentes de africanos mais positiva que a sociedade portuguesa devia conhecer. Há muita gente a fazer coisas positivas.”
Uma história de imigração mais recente e o menor peso das minorias na população portuguesa são dois argumentos usados por muitos para explicar o facto de não ser comum, por exemplo, vermos lugares de destaque e liderança ocupados por minorias.
Ainda não houve tempo para se subir na escada social, ouvem-se sociólogos dizer, até porque só agora é que os “filhos de imigrantes” estão a começar a ir para a universidade - e a escolarização ainda é a alavanca para a ascensão social em Portugal. “Isso faria sentido há uns anos”, diz Margarida Marques. “Já lá vão quase 40 anos, o tempo de uma geração”.
O argumento demográfico é importante, mas contraponho com o argumento de que a abertura das políticas de acesso à universidade foi sendo cada vez mais ampla. Seria válido se todo o resto da população se tivesse mantido exactamente na mesma.”
E afinal o que é que as experiências de outros países nos dizem, que vantagens e riscos trouxeram a recolha de dados? “Nos Estados Unidos não consigo lembrar-me de um único caso nas últimas décadas em que as estatísticas tenham sido usadas para reforçar a discriminação”, diz-nos por email William Julius Wilson, um dos mais importantes académicos americanos na área que escreveu inúmeros estudos sobre os afro-americanos (The Declining Significance of Race é um dos mais conhecidos). “Numa democracia, dados como o Censos tendem a ser usados para melhorar a situação das minorias. Nos países democráticos e livres, o argumento de que vão reforçar a discriminação é falso.”
São, de resto, as estatísticas que servem de base à legislação antidiscriminação nos Estados Unidos, por exemplo, país onde existiu escravatura e segregação racial até meados dos anos 1960. Como exemplifica Wilson, professor na Harvard Kennedy School of Government, sem elas é “mais provável que a discriminação das minorias passe despercebida”. De resto, acredita que foi a realidade mostrada pelos dados que aumentou a consciência das desigualdades e levou à implementação de programas dirigidos a minorias.
Durante anos, a polícia de Nova Iorque foi acusada de eleger como alvo jovens de minorias, prendendo-os e revistando-os. Há pouco tempo, exigiu-se que fizesse o registo da raça e etnia dos que revistava na rua e isso deu a prova “inequívoca” de que a polícia se “imiscuía de forma altamente desproporcional na vida de jovens de minorias”, diz à 2 Lawrence Bobo, sociólogo e especialista em questões raciais na Universidade de Harvard.
Desde então, os olhos estão postos na polícia para a pressionar a fazer “uma verdadeira mudança”. “Sem estes dados, o ressentimento nas comunidades de minorias teria apenas o status de uma vaga indignação. Agora é um facto”, diz. Bobo defende que é sempre melhor falar dos assuntos e dos problemas do que “os deixar vagos” e diz mesmo que a monitorização através da recolha de dados pode ser um meio para avaliar também o sucesso de medidas aplicadas.
A história do Reino Unido terá mais pontos em comum com Portugal do que a dos Estados Unidos por ter sido uma potência colonial, mas as vagas migratórias são mais antigas (a primeira grande vaga foi logo a seguir à II Guerra Mundial). É dos poucos países europeus em que o Censos tem uma pergunta sobre etnia e raça, desde 1991.
O que para John Solomos, sociólogo e investigador do Centre for Race, Ethnicity and Migration da City University of London, faz todo o sentido. Dá-nos o exemplo da sobrepopulação de britânicos negros nas prisões e de várias queixas de abusos da polícia: os dados mostraram que era preciso aumentar o número de polícias que pertenciam a minorias.
Durante os motins deste ano em Inglaterra colocou-se de novo a questão e foi possível ver “quais tinham sido os esforços da polícia em recrutar minorias”. Claro que há estudos sociológicos que poderiam dar uma ideia deste problema, defende, mas ter dados estatísticos é o que permite ter a fotografia geral rigorosa.
"Como é que se tem um discurso informado sobre processos de recrutamento de minorias se não se souber quantos estão empregados? Como é que se pode ter um discurso sobre o acesso à saúde das minorias sem dados do Serviço Nacional de Saúde?” Solomos, também editor da revista científica Ethnic and Racial Studies (Routledge), percebe que possam existir perigos, mas olha para o argumento do “não” como tendo “um elemento de querer ignorar as questões raciais”.
É verdade também que nos EUA e no Reino Unido “temos outra noção da própria linguagem sobre raça”, que “talvez não seja tão comum a outros países”. Mas a questão é sempre: “Sem estatísticas, como é que se monitoriza a discriminação e desigualdades na educação, no acesso à habitação e ao emprego?” França será o caso mais parecido com Portugal, pelo facto de também não ser permitida a racialização e etnicização de estatísticas.
Quando o debate aconteceu em França, a questão centrou-se mais em sondagens e não tanto no Censos - e pouco se discutiu sobre as consequências de não se fazer esse levantamento, lembra-nos Éric Fassin, sociólogo especialista em questões raciais na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Problemática: apesar do universalismo oficial e da ideia de uma sociedade “racialmente cega”, a “sociedade francesa é muito racializada”.
“É verdade que criar as categorias pode solidificar a ideia de raça, mas aquilo que solidifica a discriminação é a própria realidade. A solução não pode ser: não vamos falar do assunto”, diz. Ou então falar de “raça sem a mencionar”, como muitas vezes acontece. A ironia é que no final de contas aquilo que em França está presente nos discursos sobre raça é a associação entre imigrantes e não brancos porque a forma que os franceses arranjaram para ter dados sobre raça foi indirecta (como em Portugal): fazendo perguntas sobre as origens dos inquiridos, tratando “como estrangeiros pessoas que são francesas”, critica o sociólogo.
Éric Fassin conclui: no fundo, a resistência à recolha de dados sobre minorias deve-se ao facto de se contar a maioria branca, que tem tendência a ver-se como a-racial. “Os negros não precisam de estatísticas para saber qual é a sua raça. Tem havido um privilégio dos brancos em não serem contados como raça. É esse privilégio que têm medo de perder.”
Esta reportagem foi publicada na Revista 2 a 18 de Março de 2012