No prefácio que escreveu, em 1879, para acompanhar a 5.ª edição de Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco termina com uma profecia dubitativa: "Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de Perdição quase esgotada."
Sugerir que a tiragem então acabada de sair levaria mais de um século a esgotar-se era, da parte de Camilo, um óbvio e pouco convincente lance de modéstia, mas o que nem ele, que nunca se teve propriamente em baixa conta, se atreveria a prever, nesses anos em que os favores da crítica começavam a inclinar-se para a nova escola realista de Eça de Queiroz, era que essa "sociedade do século XXI" não apenas não esqueceria os amores contrariados de Simão Botelho e Teresa Albuquerque, como iria mesmo celebrar, e com assinalável pompa e circunstância, os 150 anos da publicação, em 1862, da primeira edição do Amor de Perdição.
Com o bem achado título de CCB no CCB - leia-se Camilo Castelo Branco no Centro Cultural de Belém -, a instituição dirigida por Vasco Graça Moura dedicou, no final de Outubro, uma semana de intensa programação ao romancista, e em particular ao Amor de Perdição, promovendo debates, conferências, sessões de cinema, e ainda exposições, como aquela que reuniu os estudos de Júlio Pomar para as ilustrações do Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro. E os festejos prosseguem em breve em São Miguel de Seide, na Casa de Camilo, onde a Câmara de Vila Nova de Famalicão organiza, de 16 a 18 deste mês, um colóquio internacional intitulado Amor de Perdição: Olhares Cruzados. O ministro da Educação, Nuno Crato, é um dos que já confirmaram a presença, a par de Mário Cláudio, Vasco Graça Moura, José Pacheco Pereira ou Laborinho Lúcio.
O tributo mais original fica todavia a dever-se à autarquia portuense, que aprovou recentemente a proposta de se baptizar com o nome de Largo do Amor de Perdição a praceta fronteira à Cadeia da Relação, onde Camilo esteve preso com Ana Plácido, e onde escreveu, ao que parece em apenas 15 dias, a história dos contrariados amores de Simão Botelho e Teresa Albuquerque. É a primeira vez que a cidade concede a um romance a honra de figurar na respectiva toponímia.
A arte da sugestão
Por que motivo, entre os tantos livros que o génio compulsivo de Camilo nos deixou, haveria este romance em particular de conquistar os favores da posteridade e alcançar um estatuto suficientemente icónico para se lhe renderem preitos geralmente reservados aos autores, e não às obras? O ensaísta e camilianista Abel Barros Baptista acredita que o próprio escritor, com o já referido prefácio de 1879, possa ter "contribuído para criar a ideia de que este livro é mais importante do que os outros". Baptista lembra que Camilo, nesse texto, caracteriza o sucesso editorial da obra como "um êxito fenomenal e extralusitano". À sua escala, o Amor de Perdição foi, de facto, aquilo a que hoje chamaríamos um best-seller: no primeiro quartel do século XX, já atingira vinte edições. Mas o próprio Camilo sempre lhe preferiu O Romance de Um Homem Rico, que publicara no ano anterior, e os camilianistas de várias épocas foram assumindo predilecções diversas. Não há na vasta bibliografia de Camilo algo que corresponda a Os Maias, de Eça de Queiroz, um título que seja a sua obra-prima consensual.
Se Amor de Perdição se foi aproximando desse estatuto, deve-o a um complexo conjunto de motivos, nem todos especialmente válidos. Barros Baptista começa por desmontar a ideia de que sucessivas gerações de estudantes estudaram o livro no ensino secundário: "É uma ideia bastante ilusória", garante o ensaísta, já que "o livro só integrou os programas escolares durante um período muito curto". Entre os elementos que confluíram na lenda gerada em torno da obra conta-se ainda o suposto paralelismo entre a paixão contrariada dos protagonistas e os amores que tinham lançado no cárcere o próprio Camilo e Ana Plácido. Uma comparação que Barros Baptista igualmente desmonta, lembrando que a vida do romancista na cadeia portuense não era bem a que se julga: "Saía de lá para apanhar sol, comprava pantufas para Ana Plácido..."
Mesmo a tendência para se ver no Amor de Perdição uma espécie de tradução da peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, para o romantismo português do século XIX - em ambos os casos, a inimizade de duas famílias constitui o obstáculo principal à consumação do amor que une os jovens protagonistas - esquece a dimensão triangular que a paixão de Mariana por Simão vem trazer à novela de Camilo. Barros Baptista acha que o livro é "bastante moderno" e "muito menos linear e convencional" do que geralmente se pensa, argumentando que "é difícil apontar-se uma causa única para o que vai acontecendo". A título de exemplo, o ensaísta sugere que, no final, Simão, a caminho do exílio, está já "mais interessado no seu destino do que na ligação amorosa com Teresa", que definha no convento de Monchique.
"É um dos livros mais interessantes para se conhecer a criatividade de Camilo como romancista, incluindo a sua veia cómica", diz Barros Baptista, apontando um diálogo entre Mariana e Simão como exemplo do talento do autor para sugerir conotações sexuais numa frase de circunstância aparentemente inócua: preocupada com a relutância de Simão em alimentar-se, Mariana leva-lhe um "caldinho" e diz: "(...) coma sem nojo, que esta [malga] nunca serviu." Uma tensão erótica que, na sua adaptação do livro ao cinema, Manoel de Oliveira traduzirá numa cena quase "pornográfica", com Mariana a apresentar a Simão uma galinha de pernas escachadas, numa travessa que transporta à altura da sua própria vagina.
Um ritmo vertiginoso
Também o romancista Mário Cláudio acha que "o Amor de Perdição é um romance extraordinário" por méritos diversos dos que geralmente se atribuem ao livro. Mas os pontos fracos e fortes que enumera não coincidem exactamente com os que aponta Abel Barros Baptista, o que só confirma que estamos perante uma obra bastante mais aberta e discutível do que a sua precoce canonização deixaria prever.
No seu romance Camilo Broca, Cláudio dá um lugar central a Simão Botelho, o tio de Camilo que serviu de inspiração ao Amor de Perdição, e que, na vida real, "foi um valdevinos, um canalha que chulou uma mulher casada, muito feia e muito rica". Mesmo o Simão protagonista do romance de Camilo "não é muito mais do que um pinga-amores que mata por paixão", observa Mário Cláudio, lamentando que "Simão não seja uma figura mais contraditória", mas reconhecendo que "seria exigir a Camilo uma modernidade que este não poderia ter".
Vendo Simão como "mais um decalque do Werther, de Goethe, mas sem o lado reflexivo, filosófico, do original", Cláudio não o distingue das restantes personagens de Camilo, que, afirma, "são um pouco estereotipadas, de cartão recortado, com um conteúdo relativamente pobre", o que se "torna claro", acrescenta, "quando as comparamos com as figuras de Eça". O romancista, diz, estava "deformado pela escrita do folhetim literário, que, antes de Balzac, era um desfile de estereótipos: em Camilo, a mulher fatal é sempre muito fatal, o amoroso é muito amoroso, o brasileiro de torna-viagem é sempre burro, perverso e feio".
Mas Mário Cláudio reconhece que Amor de Perdição "tem um ritmo vertiginoso" - a análise do manuscrito levou os especialistas à convicção de que Camilo escreveu mesmo o livro em duas semanas - e que a obra mostra "um grande conhecimento da técnica novelística". Valoriza ainda o modo como, no Amor de Perdição, a transcrição de cartas "é um engenho mobilizador da acção", algo que "já se fizera lá fora, mas era inédito em Portugal", e elogia "o estudo da triangularidade" oferecido pela relação das personagens de Simão, Teresa e Mariana.