Queer ou não, rap é de certeza

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Foi em Junho: de entre as canções que o produtor Le1f lançou numa mixtape, estava Wut, faixa hip-hop assente num beat minimal, palmas e uma melodia de sintetizador tão simples quanto infecciosa. Tornou-se um êxito instantâneo, causando ruído nos media em parte pelo conteúdo gay, tratado com muito humor no vídeo. Os media saltaram para cima da canção com uma fome inesperada e em menos que uma batida falavam de Queer rap: os textos já não se centravam em Le1f - que assenta arraiais na galeria Zé dos Bois, em Lisboa, terça-feira - mas em toda uma cena que quebrava com a homofobia típica do hip-hop e celebrava a sua queerness em festas com drag & dança em Nova Iorque.

Nomes como Zebra Katz e Mykki Blanco - que já actuou na ZDB - começaram a ser falados e não tiveram problema em lidar com o rótulo Queer rap, aceitando que este lhes permitia serem conhecidos. Le1f não vai pelo mesmo caminho. "Não tenho problema que me chamem gay rapper", diz ao telefone de Nova Iorque, "mas não sei o que é o Gay rap ou o Queer rap enquanto género. Há pessoas que trazem para o rap uma cultura drag, porque sempre pertenceram a ela - é o caso da Mykki Blanco. Mas isso não altera o género. Isso não torna o rap em si queer. No fim de contas, isto é rap".

Percebe-se a razão pela qual os media quiseram juntar muita gente diferente num só rótulo e a razão pela qual o rótulo parece importante: o hip-hop é tradicionalmente visto como um território hostil a qualquer manifestação associada à homossexualidade. Mas para Le1f, não só o rótulo Queer rap "é sensacionalismo" como a "aceitação exagerada" do género pelo mainstream "acaba por revelar alguma homofobia - é como se as pessoas se forçassem a ter de afirmar que estão à vontade". Mais: acredita que a "longo prazo" esta conversa "vai diminuir o valor da música. Porque o público vai cansar-se da conversa e seguir ara a próxima moda".

As palavras mais à frente

Le1f não caiu de pára-quedas neste universo nem surgiu de um dia para o outro no rap. Como outros artistas incluídos na designação Queer rap tem um "passado na dança". "Acabei o curso há dois anos", conta. "Fiz ballet e dança moderna e foi esta última que me abriu os olhos para a arte multimédia e para a fusão de vários universos".

Mas o rap é uma ocupação central há muito. Começou a fazer beats com "13 ou 14 anos" e durante algum tempo não foi visto tanto como um front-man mas sim como um produtor - começou a ser notado ao criar beats para Das Racist e para Spank Rock. "Já era amigo dos Das Racist antes de eles se formarem, os primeiros beats que usaram eram meus. Do Spank Rock não sou amigo - ele apresentou-se a mim numa festa em 2007 e trabalhei com ele".

Em finais de Abril lançou Dark York, o seu primeiro longa-duração, em que usa material seu e de outros produtores. A música não é exclusivamente hip-hop e vai beber a universos da electrónica de dança, como acontece com outros artistas da cena Queer rap. "As coisas mais velhas do disco foram feitas em 2010, talvez. O que no mundo dos beats é muito tempo. De certa maneira Dark York é um best-of do que fui trabalhando nos últimos anos. Era para sair em 2011 mas não estava a gostar do material que tinha e fui fazendo mais e mais". Não está apaixonado pelo seu trabalho. Diz que em Dark York se nota "que ainda estava a experimentar com house beats e electro, etc". No futuro pretende que o som "seja cada vez mais homogéneo".

"Tenho interesses diferentes, mas em cada disco quero que as canções tenham um som comum. Não quero misturar canções com sons house e canções em que canto em auto-tune". Parece estar consciente que a exposição o coloca noutro campeonato: "No último ano desenvolvi uma paleta sonora e ganhei confiança a rapar. Agora adoro o som que estou a fazer e não quero saber se as pessoas gostam ou não, se percebem o que rapo ou não. Mas não quero continuar a esconder a minha voz, quero ser mais sexy, pôr as palavras mais à frente".

Essa confiança para extravasar para as atuações ao vivo, o que é um fenómeno recente: "Até ao ano passado não gostava nada de como estava em palco", confessa - e quase não se acredita, vendo o vídeo de Wut, em que dança como uma daquelas moçoilas semi-despidas dos vídeos de hip-hop tradicionais e quase faz um lap-dance a um rapaz branco em tronco nu.

"O vídeo, para mim, é um gozo aos vídeos que por norma vemos no hip-hop", diz. "Não queria passar a imagem de um rapper pesadão a debitar profecias. Queria uma performance de identidade, algo em que pudesse ser outra coisa. E queria uma personagem que irritassem os homofóbicos".

Em toda esta dicotomia à volta de fazer ou não parte do Queer rap (e disso existir ou não) o discurso de Le1f umas vezes aproxima-se, outras distancia-se, do de outros membros do género. No que toca à performance, contudo, tende a alinhar pelo mesmo tipo de declaraçãos dos outros artistas: diz ser "muito visceral" e querer "ir ao limte da [sua] voz". Tem humor e é a rir que diz querer "ir ao limite da [sua] roupa, também". Acrescenta ainda desejar "que toda a gente se una com as [suas] canções" e que "a raiva" que há nelas "saia cá para fora".

Com todo este barulho pode perder-se a noção da real dimensão das coisas. Le1f tenta pôr os pés na terra. "Não sei quanta gente me ouve. Nos melhores concertos há umas 400 pessoas mas não quero preocupar-me com isso. Agora, claro que quero dinheiro". Queer ou não, rap é de certeza. E às vezes tão bom que ele merece ganhar muito dinheiro.

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