Três anos e oito meses depois da sua estreia em França, e dois anos depois da morte do seu realizador, eis que o último filme de Chabrol, Bellamy, chega às salas portuguesas. Que o bizarro timing não nos distraia, nem ao rarefeito público de Chabrol: o homem foi Chabrol até ao fim, e mesmo que Bellamy não pertença ao top ten da sua filmografia vale muito a pena ver. É, a vários títulos, Chabrol “puro”, nos detalhes (a província francesa, no caso Nimes; o âmbito criminal) como no essencial (a moralidade como grande imbróglio, em circuito subterrâneo progressivamente contaminado). Por acaso, até acaba com uma citação de Auden - “há sempre outra história” - que bem podia ser o resumo final de uma obra construída sob o signo, muito hitchcocko-langiano, da conspiração, e da diferença entre aparências e essências. Chabrol podia não saber que não filmava mais, mas se assim foi o acaso (coisa também bastante chabroliana) fez bem o seu trabalho.
Também o tom é Chabrol puro, e no seu mais refinadamente escarninho. O espectador já esteve sempre a levar coices, surpreendido pela comédia quando se pensa instalado no drama, e pelo drama quando se pensa na comédia (porque é tudo a mesma coisa, “a comédia da vida” e o “drama da vida”, e aí Chabrol sempre teve o seu quê de renoiriano). Mas também surpreendido pelas digressões, pelas cenas que parecem “ao lado” de um filme que se estrutura como um inquérito criminal mas que se resolve também como trama - grave e ligeira - de incidência doméstica (o inspector e a sua mulher) e familiar (o inspector e o seu meio-irmão, o seu meio-irmão e a mulher do inspector).
O inspector é Depardieu, cada vez mais uma grande “massa” fascinante de ver em movimento. E a inspiração para o inspector, vincada por variadas citações e alusões ao universo da literatura policial, é obviamente simenoniana - como Maigret, Depardieu comenta a investigação com a mulher, e esta ajuda-o a fazer palavras cruzadas. Com estes elementos, constrói Chabrol uma comédia negra com vista para o abismo (ou para o cemitério, onde se começa e onde se acaba), que trata o espectador como Hitchcock tratava os seus espectadores, colocando-os sem dó nem piedade perante o Mal e a sua irrevogável força. Há três anos e oito meses que não estreia nenhum filme de Chabrol, já fazem falta.