A história da reunião que acabaria por abrir as portas à fundação da CEE
Face à derrota da CED, o primeiro projecto de união política europeia, Monnet resolvera pedir a demissão do cargo de presidente da Alta Autoridade da CECA, que exercia desde a sua fundação. Queria estar totalmente livre para se entregar de novo ao seu combate por uma Europa federal. Os franceses aplaudiam. Queriam vê-lo, a ele e às suas ideias, longe da vista. Os outros membros fundadores da CECA, Alemanha, Itália e os três "pequenos" do Benelux, pensavam que era melhor mantê-lo à distância para não irritar ainda mais os franceses.
Paul-Henri Spaak, o dinâmico chefe da diplomacia belga que se haveria de tornar o "segundo Schuman" de Monnet, conseguira convencer os seus cinco parceiros da CECA de que era necessária uma nova conferência entre os governos, nem que fosse para deliberar quem substituiria Monnet à frente da Alta Autoridade e, se possível, para discutir como relançar o processo de unificação da Europa depois do estrondoso fracasso da CED.
Spaak fizera o trabalho de casa.
Com Monnet e com os seus pares da Holanda e do Luxemburgo, Johan Beyen e Joseph Bech, preparara um memorando, chamado do Benelux, com um conjunto de propostas concretas. O ministro holandês defendia que chegara a altura de pôr sobre a mesa um "mercado comum geral". A ideia era bem vista pelo Luxemburgo, mas Monnet, mais prudente, queria apenas que se sugerisse o alargamento do mercado comum do carvão e do aço a outros sectores, por exemplo aos transportes ou à energia. Sabia-se que o chanceler Adenauer era favorável à ideia de um "mercado comum", mas que não queria irritar os franceses.
Todos concordavam, no entanto, que o memorando deveria incluir o reforço da natureza supranacional da integração europeia que já estava na génese da CECA, com a sua Alta Autoridade independente dos governos. Deixar o futuro da Europa apenas ao cuidado dos governos, numa lógica meramente intergovernamental que dependeria da (boa) vontade dos ministros em funções, era condenar o empreendimento ao fracasso.
Gaetano Martino, o ministro italiano, enfrentava eleições na sua circunscrição da Sicília e propôs que a conferência se realizasse em Taormina, uma pequena estância balnear a 30 quilómetros de Messina, nos dias 1 e 2 de Junho de 1955. Monnet nem sequer foi convidado. Mandou um observador.
"Estávamos instalados nesse maravilhoso hotel, o San Domenico de Taormina, um velho convento", conta Max Kohnstamm nas suas memórias. "Sentia-me como um leproso. As pessoas não queriam falar comigo. Monnet estava constantemente a ligar-me. As comunicações com o Luxemburgo eram péssimas... A chamada estava sempre a cair... Ele dizia-me: 'Vá falar com o Spaak, diga-lhe isto e aquilo... Vá falar com o Hallstein [o ministro alemão] e diga-lhe...' Isto começou a pôr-me doido. Disse-lhe: 'Sr. Monnet, por favor compreenda que eles não estão aqui para fazer a Europa. Estão aqui para o enterrar a si'. Houve uma pausa. Finalmente ele respondeu: 'Então é porque estão redondamente enganados'." Quando, no dia 2 de Junho, o segundo dia da conferência, chegou o momento de redigir um comunicado final, não havia grande coisa a dizer. Os Seis tinham-se entendido sobre quem haveria de substituir Monnet na Alta Autoridade.
Mas, sobre o memorando do Benelux, os franceses apenas pareciam dispostos a aceitar um compromisso vago para se estudar o assunto. Estavam muito interessados na ideia, que Monnet lhes tinha preparado como engodo, da criação de um mercado comum da energia atómica (o futuro Euratom), porque queriam desenvolver a sua capacidade nuclear ainda incipiente face aos ingleses e, sobretudo, aos americanos. Não estavam, de maneira nenhuma, dispostos a dar a Spaak aquilo que ele queria levar de Messina: a criação de uma comissão para "estudar" as propostas do Benelux, liderada por uma "figura política", suficientemente forte para fugir ao controlo da diplomacia, pouco ou nada interessada nessa coisa de uma Europa supranacional.
No início da noite do dia 2, quando a reunião se aproximava do fim sem qualquer conclusão substancial à vista, Herbert Morrison, o observador britânico havia sempre um observador britânico nessa altura, aliás a pedido dos Seis, que não queriam ver a Inglaterra desvincular-se do continente, decidiu tomar o avião de regresso a Londres. "Deixo Messina satisfeito porque, mesmo se continuarem reunidos, nunca conseguirão um acordo, e mesmo que se ponham de acordo, nada acontecerá." As suas palavras fi aram para a história.
Sole MioNa madrugada do dia seguinte, 3 de Junho, Max Kohnstamm, retido no quarto com febre, foi acordado por um dos seus colegas da Alta Autoridade, Winrich Behr. "Eles chegaram a acordo e o resultado é muito melhor do que nós imaginávamos. Parece que houve uma reunião de crise entre Spaak e Pinay [o ministro francês]." O que acontecera, afinal, naquela noite? "Fui dizer a Spaak que tínhamos perdido. Disse-lhe: 'Pinay já decidiu que não lhe dará o que o senhor quer. Não há nada a fazer'", escreve André de Staercke, que integrava a delegação belga. "Muito bem respondeu-me ele, então vou falar com ele a sós." Convocou-o para um encontro às 11 da noite.
Quando o ministro belga regressou ao seu quarto rompia a madrugada. "Estava tão contente que encomendou uma garrafa de champanhe", conta de Staercke.
"Depois, dirigiu-se à varanda para ver o sol nascer e de repente começou a cantar o Sole Mio... Pinay ocupava um quarto no andar de cima. Abriu a janela e disse: 'Olhe lá, Spaak, esteve a chatear-me toda a noite, pode agora fazer o favor de deixar-me dormir'." Ainda hoje não há um relato fiel do que se passou nesse encontro. Há versões que dizem que, impaciente com a falta de resultados, Monnet terá telefonado a Konrad Adenauer, o chanceler alemão, directamente para Bona. O que é certo é que a França cedeu.
Ou cedeu apenas o suficiente para pensar que conseguira depois controlar a situação, deixando arrastar as coisas. A declaração final falava apenas de "conversações exploratórias" entre os governos sobre a melhor maneira de implementar o memorando do Benelux. Mas o princípio de negociar a criação do Mercado Comum ficou estabelecido. Cabia aos intérpretes da declaração de Messina tentar conduzir o processo na boa direcção. Foi o que aconteceu.
Ao aceitar que uma "figura política" dirigisse o processo, a França deixou que os acontecimentos lhe fugissem das mãos. Quando Spaak e os seus amigos do Benelux fizeram esta proposta nada inocente, estavam a pensar de novo em Monnet.
A França não foi tão longe, mas aceitou que o escolhido fosse o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica. Spaak era uma figura plena de convicções e de energia, alto e forte, o "Big Man", como lhe chamara a Time americana sete anos antes, numa longa reportagem sobre o futuro da Europa. Tal como Robert Schuman com o Tratado de Paris que fundou a CECA, Paul-Henri Spaak funcionou como o alter ego do grande inspirador da união europeia que, incansavelmente, continuava a trabalhar na sombra.
Com o mesmo vigor com que negociara conhaque pelo mundo inteiro entre as duas guerras, ou garantira o abastecimento dos aliados europeus durante a II Guerra Mundial. Um homem do mundo, ouvido atentamente em Washington, em Londres e em Bona, mas também em Paris, cuja intuição determinou em boa medida o curso dos últimos 50 anos da História europeia.
Em menos de dois anos, no dia 25 de Março de 1957, o tratado que fundava a Comunidade Económica Europeia era assinado pelos seis países membros da CECA. Em Roma.
"O objectivo de Messina era manter viva a ideia de Europa, mas retirar viabilidade às propostas do Benelux", confessou mais tarde o conselheiro económico de Antoine Pinay, Olivier Wormser. Durante o voo para a cidade italiana, o ministro perguntara-lhe: "Então é sim ao Euratom e não ao Mercado Comum?" Ele respondera: "Senhor ministro, não é bem assim. A França já disse não à CED. Não pode usar outra vez o seu veto".
A França dilacerava-se sobre o seu destino, antes de descobrir que, também para ela, só podia ser a Europa comunitária.
O ministro e a farda alemãEntre 1950 e 1955, enfraquecida e dividida sobre o que fazer com a Alemanha, a França andou à procura do seu lugar numa Europa que deixara de ser definitivamente o centro do mundo para ter de adaptar-se a uma nova ordem bipolar definida pelas duas superpotências.
É isto que explica a sua esquizofrenia. Fazendo e desfazendo a Europa, ao ritmo dos sucessivos governos da IV República.
Robert Schuman, o principal intérprete do acto fundador da integração europeia, simboliza, talvez mais do que ninguém, as angústias da França.
Quando, no dia 9 de Maio de 1950, o então ministro dos Negócios Estrangeiros leu na Sala dos Relógios do Quai d'Orsay, em Paris, a célebre declaração em que propunha "colocar o conjunto da produção francesa e alemã de carvão e de aço sob a alçada de uma alta autoridade comum, numa organização aberta à participação dos outros países", a França iniciava uma turbulenta viragem de 180 graus na sua política europeia, ou seja, na sua política em relação à Alemanha.
Não fora fácil a Schuman chegar ali. Para pôr em prática o plano que preparara com Monnet e que se traduzira na célebre declaração que tem o seu nome e que fez do dia 9 de Maio o Dia da Europa, o chefe da diplomacia francesa fora obrigado a negociar o tratado fundador da CECA à margem do seu próprio ministério. Tinha o apoio do primeiro-ministro René Pleven, de Adenauer, dos ingleses e dos americanos. Mas, no Quai d'Orsay, desconfiavam dele. Chamavam-lhe à boca pequena "o ministro que envergou uma farda alemã".
De Gaulle diria dele: "É um boche, um bom boche, mas um boche".
Schuman, um católico íntegro, conhecia melhor do que ninguém a tragédia dos conflitos que por duas vezes destruíram a Europa na primeira metade do século XX. Nascido na Lorena, quando a Lorena era alemã (ocupada em 1870, restituída em 1918, reocupada em 1940, restituída em 1945...), combateu no Exército alemão durante a I Guerra Mundial.
Percebia na carne e no espírito a importância de uma aliança indestrutível entre a França e a Alemanha.
Mas a CECA, pondo em comum as indústrias que alimentavam a guerra, respondia apenas a parte do problema alemão da França.
Não respondia à questão do rearmamento da Alemanha.
Até 1949, data da fundação da República Federal no território alemão ocupado pelas potências aliadas depois de 1945 e por imposição anglo-americana, Paris sonhava ainda com a possibilidade de uma Alemanha "balcanizada" e, portanto, impotente. O nascimento da RFA colocava-a perante um facto consumado. Com a Comunidade Europeia de Defesa, prevendo um exército europeu e um ministro da Defesa europeu, os franceses tentavam controlar a realização do seu segundo pesadelo: o rearmamento alemão. Sabiam que tinham de fazer alguma coisa face à pressão cada vez mais forte de Washington. Com a guerra da Coreia, desencadeada em Junho de 1950, os Estados Unidos queriam da Europa, incluindo a Alemanha, uma participação activa no esforço político e militar para conter a agressividade crescente da União Soviética. O "bloqueio" de Berlim, em 1948, decretado por Estaline, sublinhara dramaticamente o facto de que a linha da frente da Guerra Fria passava pela Alemanha dividida.
A França começara a perceber aquilo que Monnet e Schuman intuíram imediatamente: que a sua anterior política alemã estava condenada ao fracasso.
Ocidente versus unificaçãoPor seu lado, Konrad Adenauer, o primeiro chanceler da República Federal, via na integração europeia, fosse ela económica ou política, a única via possível para restituir ao seu país um estatuto internacional aceitável. Aplaudiu a CECA e aceitou a CED.
Mas, afinal, a França ainda não estava preparada para ir tão longe. De Gaulle opunhase intransigentemente a essa "lamentável rendição do glorioso Exército da França a uma papa de aveia europeia". Pleven cai e, com ele, Schuman.
Chegado ao poder em 1954, Mendés-France ainda tenta negociar com os seus parceiros europeus um protocolo adicional que atirasse para mais tarde a concretização da CED. Mas já ninguém estava disposto a ceder.
Exigiram-lhe uma definição. Antes de levar finalmente o tratado à Assembleia Nacional, declarandose "neutral, o primeiro-ministro avisara: "O axioma da política francesa deve continuar a ser seguir com a Inglaterra. (...) O Governo da França segue uma política de equilíbrio na Europa e não uma política europeia".
Raymond Aron descreve o debate em torno da CED como "o maior conflito político e ideológico vivido pela França desde o caso Dreyfus".
Ao queimarem a CED ao som da Marselhesa, os deputados franceses não imaginavam sequer que, da suas cinzas, nasceria a Comunidade Económica Europeia.
Mendés cairia pouco antes da conferência de Messina e seria substituído por um governo mais pró-europeu sob a liderança de Edgar Faure.
Os americanos queriam a Europa a todo o custo pelas razões que se sabem. Os ingleses também, desde que ficassem de fora. Nem uns nem outros queriam ver de novo o continente envolvido numa guerra civil fratricida.
Adenauer escolhera a integração no Ocidente contra as promessas vãs da unidade de uma Alemanha "neutral" acenadas por Estaline como a única maneira de reabilitar a Alemanha, e elegera a integração europeia como a única forma de defender os interesses nacionais num país onde a ideia de nação estava mortalmente ferida.
Em Bona, nem todos estavam de acordo com o chanceler. Os sociais-democratas opunhamse à sua política de integração ocidental sob patrocínio americano porque achava que isso iria adiar eternamente a possibilidade da unificação.
Quanto ao problema do rearmamento alemão, ele acabou por resolver-se finalmente em 1955 com a inclusão da República Federal na NATO por proposta britânica.
Entre 1955 e 57, a realidade ensinou aos franceses que não tinham grande alternativa.
O Exército soviético reprimia sem dó nem piedade as revoltas populares na Alemanha de Leste (1953) e na Hungria (1956). A aventura do Suez (1956), a última aventura militar da França e da Inglaterra enquanto potências do Médio Oriente, acabara em fiasco, quando o Presidente Eisenhower mandou que as tropas francesas e britânicas regressassem a casa, humilhadas.
Só restava um caminho para restituir-se a si própria os meios de uma potência influente no destino do mundo: construir a Europa.
O preço do ImpérioWinston Churchill, cuja autoridade moral era imensa, colocara a questão com a sua habitual clarividência muito antes de todos os outros.
A sua Europa, "a espécie de Estados Unidos da Europa" que anunciara no seu discurso de Zurique em 1946, não devia ser construída a partir de uma aliança entre Paris e Londres, mas a partir de uma "aliança indestrutível" entre Paris e Bona. Via mais longe e mais fundo que todos os seus contemporâneos, a não ser no que dizia respeito ao Império britânico.
"Vou dizer-vos agora algo que vos surpreenderá: o primeiro passo para a reconstrução da família europeia deve ser uma associação entre a França e a Alemanha", disse em 1948, no Congresso da Haia.
"Não pode haver renascimento da Europa sem uma França espiritualmente grande e sem uma Alemanha espiritualmente grande (...). A estrutura dos Estados Unidos da Europa será tal que tornará menos importante a força material de cada estado. Os pequenos estados contarão tanto como os grandes e serão considerados de acordo com a sua contribuição para a causa comum." A Inglaterra era outra coisa. O seu país, com a Commonwelth, seria uma espécie de "fiador" desta união. Quando regressou ao poder em 1951, o líder britânico confessou: "Eu adoro a França, adoro a Bélgica, mas francamente a Grã-Bretanha não pode reduzir-se a esse nível." Foi o seu único erro. Poucos anos depois de constituída a CEE, a Inglaterra pedia a adesão.
Para encontrar a feroz oposição do general De Gaulle. A criatura ultrapassara o seu próprio criador.