Aos dez anos, no auge de uma crise obsessivo-compulsiva, a pequena Alison recebeu um diário. Na verdade, até era um calendário de parede de um dos fornecedores da casa funerária ("um curioso 'memento mori'", como ironiza num quadradinho da prancha à esquerda, em que vemos como tudo começou). O primeiro dia foi na quarta-feira de cinzas. "O pai está a ler (...)", escrevera Bruce Bechdel, como se estivesse a dar-lhe "um empurrão". Ela continuou: "(...) a Trombeta do Cisne. Tenho a minha cauda posta. Fomos à missa. Puseram-nos cinzas. 7 miúdos ficaram doentes hoje."
O "tudo começou" é a escrita de um diário — hábito incentivado quer pelo pai, quer pela mãe — que veio a desabar na edição de dois livros particularmente íntimos: "Are You My Mother?", editado este ano, e "Fun Home", lançado em 2006. São duas memórias gráficas (a última sobre a mãe, a primeira sobre o pai) da autoria de Alison Bechdel, criadora de "Dykes to Watch Out For", tira de BD que durou 25 anos (de 1983 até 2008), em que narrava as intricadas ligações de um grupo de lésbicas. Bechdel, lésbica assumida desde os 19 anos, foi, aliás, uma das primeiras autoras a falar abertamente sobre o tema, e não só — numa tira descreveu, ironicamente é certo, uma espécie de regulamento que avalia o sexismo existente em filmes e obras de ficção, hoje conhecido como o The Bechdel Test.
"Fun Home", trocadilho que tanto pode significar "casa divertida" como "casa funerária", chega agora finalmente a Portugal com a Contraponto, chancela do grupo BertrandCírculo, contando com uma exímia tradução de Duarte Sousa Tavares. Altamente aclamado pela crítica (foi eleito livro do ano pelo "New York Times"), este lançamento não é apenas uma boa notícia para os amantes de BD. Na senda de "Persepolis", de Marjane Satrapi, e "Blankets", de Craig Thompson, também "Fun Home" é um elevado exercício autobiográfico e confessional, avassaladoramente íntimo, com uma elevada carga literária e, quiçá, filosófica.
A filha lésbica e o pai gay
O livro, que demorou sete anos a ser feito (Bechdel fotografou-se a si própria na pose de cada personagem como referência para o desenho), relata a relação da autora com o pai, Bruce Bechdel. Professor de inglês, herda o negócio da casa funerária da família, mas a sua verdadeira paixão era o "restauro obsessivo" da sua casa neogótica. "Era capaz de transformar lixo... em ouro", conta Alison, recordando aqueles tempos na Pensilvânia rural. Os filhos não tinham outra escolha senão participar na ordem de trabalhos para compor aquele "museu" ("Tratava os móveis como se fossem filhos, e os filhos como se fossem móveis.")
Já na universidade, incentivada por uma série de literatura certeira, Alison assume-se lésbica, numa carta à família; um anúncio logo abafado por uma outra revelação, a da homossexualidade do pai, e, semanas depois, pela sua morte ou potencial suicídio. Os dois, ligados por um ténue laço, acabam por viver caminhos inversos: o pai que morre sem sair do armário, a filha que escancara a porta, ainda antes do sexo.
É, como o subtítulo indica, uma autêntica "tragicomédia familiar". Sobre a aceitação da sexualidade, sobre a vida familiar, sobre a procura de nós mesmos. Tudo isto com inúmeros momentos humorísticos, um elevado detalhe gráfico (nas expressões, na ilustração precisa das analepses e prolepses, nos pormenores como a transposição de fotografias e excertos de cartas com vários tipos de letra) e um sublime toque literário. As referências abundam em todos os capítulos, sempre em ligação com a vida real, e com o pai em particular: Camus, Fitzgerald (um eterno fascínio), Proust (que lia no ano anterior à morte), até culminar em James Joyce. As últimas páginas do livro são precisamente dedicadas ao inebriante paralelismo entre "Ulisses", o "livro favorito de sempre" de Bruce Bechdel, e o seu próprio percurso pessoal. Um brilhante término de uma narrativa que termina com uma mensagem de... será amor? — "Ele estava lá para me apanhar quando saltei."