Islândia: o maldito capital e a pirâmide de Maslow

O capital não é só o dinheiro e património dos bancos, embora estes também tenham uma importância relevante na saúde de uma economia moderna

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Ints Kalnins/Reuters

Com a crise instalada, e a austeridade assumindo contornos de rapacidade, não é de admirar que a indignação seja regra, e o conceito de um admirável mundo novo em total ruptura com o passado afigure-se como um apelo irresistível. Se tudo está mal, então tudo tem que ser alterado. Se foi este o sistema político que nos colocou nesta situação, que se dane o sistema e os políticos que o sustentam. Se esta economia não funciona, que se arrase a economia e venha outra. Apesar de toda indignação do país ter fundamentos válidos, tal não significa que um cenário de ruptura total seja a melhor solução.

O que se passou na Islândia parece reforçar esta concepção de que uma ruptura absoluta com o passado é a solução mais rápida e eficaz para os problemas do país. Basta punir os políticos, arrasar o capital e reunir uma assembleia de cidadãos livres para que no momento seguinte tenhamos paz, crescimento e um futuro auspicioso.

A questão, porém, é que as coisas não são assim tão simples, Portugal é um país muito diferente da Islândia. Comecemos pela demografia: a população do país é superior a dez milhões de habitantes; na Islândia a população não chega aos quatrocentos mil. A discrepância continua em todos os indicadores que possamos arranjar: no PIB per capita, nos índices de desenvolvimento, na disponibilidade de recursos naturais, etc.

Depois, o funcionamento do Estado Islandês não depende tanto do financiamento dos mercados como o nosso, para assuntos tão variados e relevantes como o investimento público ou as prestações sociais. E não podemos esquecer que a Islândia não tem parceiros com uma moeda comum, logo o efeito contágio é muito menos significativo na Islândia do que na Grécia ou Portugal. A pressão internacional no sentido de obtermos um reequilíbrio nas contas públicas é muito maior no nosso país do que na Islândia, e isto é algo que não conseguimos escapar sem consequências desagradáveis.

Depois, alastra a exigência de punir o maldito capital. Antes de refutar esta ideia, é preciso primeiro circunscrever o que é o capital e a sua importância no nosso bem-estar. O capital não é só o dinheiro e património dos bancos, embora estes também tenham uma importância relevante na saúde de uma economia moderna.

O Friedman, ao explicar a "mão invisível" de Adam Smith, deu o exemplo do processo de fabrico de um lápis, mas a mesma lógica aplica-se da mesma forma nos bens essenciais ou de primeira necessidade. Para que estes estejam disponíveis nas grandes superfícies ou nas merecerias, é fundamental termos o maldito capital em doses generosas e toda uma intrincada logística que só funciona porque há uma busca "egoísta" por dinheiro.

Para estes bens de primeira necessidade estarem ao nosso alcance podem ser precisos porta-contentores, vagões, estradas, armazéns, máquinas, etc. Tudo isto é capital. E os bancos desempenham um importante papel neste processo, porque proporcionam meios financeiros para montar estas estruturas e adquirir tudo o resto que é imprescindível para estas funcionarem. Se não fosse o maldito capital, muitos produtos, incluindo todos os essenciais, sofreriam uma carestia que poderia ser incomportável. O maldito capital, a ganância dos banqueiros e dos grandes empresários, e todo o "interesse nu" inerente podem ter contribuído para o actual estado de coisas, mas é inegável que proporcionam benefícios alargados. 

Isto é, obviamente, uma sobrevalorização da economia, mas vejamos a pirâmide das necessidades de Maslow. As necessidades primárias são a base da pirâmide e uma economia de mercado continuará a ser a melhor forma de garantir a satisfação destas. Já foram "experimentadas" diversas alternativas, mas nenhuma destas revelou-se mais eficaz.

Perante a ausência de alguns pressupostos economicistas não é linear que seria possível escalar na hierarquia proposta por Maslow; muito pelo contrário, a persecução de intuitos mais nobres da alma humana seria seriamente afectada, pois estaríamos muito menos folgados em garantir a sobrevivência. É certo que muitos julgam que estes pressupostos económicos são inabaláveis. O funcionamento da economia parece robusto e resiliente e uma gloriosa revolução não teria consequências tão extremas. É possível, mas sou obrigado a dizer que tenho dúvidas que assim seja.

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