Há quanto tempo não se ouvia contar uma boa história em Lisboa?

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Tudo se passará na zona do Príncipe Real Pedro Cunha

Ele há casos e casos, mas o que aqui está em apreço não pretende que quem conta um conto lhe acrescente, necessariamente, um ponto. O que quer é logo puxar um outro conto, assim ao jeito de quem come cerejas. E é com olhos postos nos olhos do narrador, nas mãos, sem luzes e amplificadores a atormentar, mas com os ouvidos bem atentos à voz do contador, que de amanhã a domingo, do Príncipe Real ao Centro Champalimaud, se ouçam histórias, contos, tradicionais, de Lisboa e do mundo. Era uma lacuna na cidade. Assim se organizou o Festival Terras Incógnitas.

É dele que fala, com segurança e paixão, Sofia Maúl, madeirense radicada em Lisboa, terapeuta da fala e tradutora, uma dos cinco contabandistas. E é ela que vai abrir o programa, amanhã, a partir das 17h, sob o majestoso cedro centenário do Jardim do Príncipe Real: "Lisboa (nada tinha)... a não ser público, mas muito pouco mexia. Terá histórias para contar? É o que vamos descobrir. Queremos pegar no que sentimos ter em comum a Lisboa, que é uma porta, de chegada, de partida. Daqui se desbravaram terras incógnitas, e onde se chegou com histórias mirabolantes de tais terras, das árvores que davam o mel. Então, há mesmo histórias. O festival servirá para estimular isso, para encontrar novos contadores."

Sofia diz que são, mesmo, "cont(r)abandistas", de histórias, por viajarem muito, sempre à procura de boas histórias para partilhar. E é por serem de origens tão distantes que considera "de génio" o nome adaptado. E diz que dessas viagens trazem na mala as histórias. Juntaram-se em 2006, numa associação sem fins lucrativos, após encontros de formação na Biblioteca Municipal de Oeiras, para começarem a organizar serões regulares de contos em Lisboa, nas associações Bacalhoeiro e Sou.

Tal "cont(r)abando" é formado por Antonella Gilardi, italiana, professora de expressão dramática, António Gouveia, de Angola, que diz que as boas histórias são como a gripe - "é apanhá-las e depois espalhá-las" -, Cláudia Fonseca, psicóloga e narradora nascida no Rio de Janeiro, que diz ter herdado das tias a veia de contadora, mais a Luísa Rebelo, apaixonada pelas praias, de onde vislumbra contos da Islândia à Nigéria, ou da Beira Interior ao Alasca. Sofia também tem raízes nórdicas herdadas dos seus avós.

"Reparámos que os adultos queriam ouvir histórias. Nós somos mediadores e promotores de leitura, trabalhamos em escolas, bibliotecas. Mas já existia um movimento urbano de narradores que conta histórias para adultos. É por isso que as salas enchem, e cada vez mais. E assim vamos convidando contadores profissionais, que fazem a noite abrir-se."

O que difere de um contador de contos tradicionais de um narrador profissional não é fácil de explicar. Diz Sofia que nas Palavras Andarilhas (encontro de Beja que já vai na 12.ª edição), "após grande discussão não conseguimos encontrar a sua definição." "Há um contador tradicional, que herda da linha familiar essa veia de contar, e há o contador urbano que é um artista. Ao fim e ao cabo, faz uma performance. Pode vir ou não do teatro. No caso dos Contabandistas não há ninguém oriundo do teatro, estamos muito ligados ao livro. A nossa pesquisa para repertório é feita pela leitura, há mesmo contos tradicionais que são encontrados em pesquisas editadas. O profissional é pago para contar histórias de vida, contos tradicionais ou contos de autor", diz Sofia Maúl.

Mas já se consegue viver assim, diz a contabandista. "Temos o António Fontinha e a Cristina Taquelim, que irão estar connosco no Festival, e contar "à portuguesa", nos serões de sexta-feira [e sábado] no teatro A Barraca. Um conto puxa outro. Lá estarão também o inglês Ben Haggarty e a jamaicana Jan Blake, que contarão em inglês, sem tradução."

Os contadores de histórias são cada vez mais procurados, por feiras do livro, bibliotecas, teatros, bares. Diz Sofia que "a procura está a aumentar, pois parece que as pessoas andam desencantadas com o ecrã. Percebemos que precisamos cada vez mais uns dos outros. É pelo contacto, pelo afecto, há pedidos diferentes, dá para tudo, até para despedidas de solteiros, onde se querem ouvir contos eróticos."

Lisboa ouvirá contos de tradição oral. Não houve recolha de histórias, não há bibliografia estudada. "É tudo tradição oral. Vamos tentar estabelecer pontes com populações imigrantes em Lisboa e puxar pelas suas línguas, pelas suas histórias. Queremos estimular essa ebulição", explica a narradora, que abre o apetite para uma micromaratona, n"A Barraca, sexta-feira à noite, "onde as pessoas podem contar histórias do bairro, no caso, da Madragoa, das partidas dos marinheiros para a pesca."

Do Príncipe Real partir-se-á para o resto... Sofia vai estar sob o cedro, observará o público, primeiro, e deverá avançar com o seu conto preferido - Jaime e as Bolotas, do inglês Tim Bowley -, depois seguir-se-á para o miradouro de São Pedro de Alcântara, pela cervejaria Trindade - onde será contada nova história acompanhada por um copo de cerveja, desce-se aos largos do Carmo e do São Carlos. Ao longo do percurso, gente com conhecimento de Lisboa fará a ligação das histórias à paisagem.

A improvisação é a diferença da narração oral para as artes performativas. "O contador contará aquilo que acha que o público quer ouvir. Depende da observação do público, do contexto em que nos situamos. É o que torna a narração atraente, pela sua imprevisibilidade e fluidez. É orgânica com a situação. Depende se na assistência estiverem muitas crianças ou adolescentes. Estes são os mais difíceis, pois à primeira negam, mas se cativar é difícil, mantê-los atentos é mais simples. É preciso saber lidar com a rejeição. Brincamos com eles, mas nunca os ignoramos", explica a Sofia Maúl.

Sábado, de manhã e à tarde, no Jardim da Estrela e no Largo do Camões, há histórias para a família e o encerramento do Festival, na manhã de domingo, ocorrerá no anfiteatro ao livre do Centro Champalimaud.

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