Uma bomba com meninas de bikini dentro

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Spring Breakers é potente e grotesco, vai pela via sensorial DR

A imagem original, a fantasia que faz cócegas no cérebro, foi a de um grupo de raparigas de bikini na praia, armas e balaclavas. (Nada de exagerar na fantasia: isto aconteceu muito antes das Pussy Riot, deve mais a sátira grotesca à la Russ Meyer...) Depois, imaginar um filme assim com um cast de actrizes de um universo teen benigno, do género Disney Channel ou High School Musical, e meter-se dentro do bikini delas e concretizar uma grosseria de drogas, álcool e sexo - não como quem perverte o que é puro, mas como quem olha para a realidade.

Harmony Korine fez isso, e lançou a bomba no Festival de Veneza, Spring Breakers (concurso), que tem Selena Gomez, Ashley Benson, Vanessa Hudgens e Rachel Korine, as quatro raparigas que embarcam no ritual de férias de Páscoa (spring break), fazem um assalto e acabam na prisão, de onde saem com caução paga por um traficante de drogas e de armas, e rapper, que as vai querer usar para os seus negócios e para o seu prazer - James Franco diverte-se a construir uma silhueta com influências de Sean Paul, artista de dancehall, laivos de Bobby Peru (Willem Dafoe no Wild at Heart, de Lynch), por ser impossível desviar os olhos da situação dental, e a imprevisibilidade nas armas e o cabotinismo de Scarface/Al Pacino.

O argumento foi escrito, contou Korine, em pleno spring break, com gente em redor a vomitar, a fazer sexo pendurado em candeeiros. O filme não vai pela via dos diálogos ou da narrativa, mas pela experiência sensorial - qualquer coisa de "líquido", palavra do realizador. Vêm à memória experiências como as de Gaspar Noé (Irreversível; Enter the Void), mas também a construção de uma fantasia pop, grotesca e monstruosa como a que Gregg Araki filmou em The Doom Generation (1995), dizendo que era preciso perder o medo, contar com esse mundo, estava ali. Korine diz o mesmo ao falar de uma nova espécie, "os miúdos criados pelos videojogos, os television babies", geração para quem "o fosso entre o que se vê e o que se faz é cada vez menor". (Nestes casos diminui na rodagem, também, o fosso entre o fazer de conta e a experiência, e o filme aproveita essa dúvida no espectador e o seu voyeurismo: até onde eles foram, o que fizeram?...) E depois há Britney Spears, todo um mundo, os videoclips, a sensualidade gordurosa - a personagem de Franco às tantas lá se senta ao piano, junto ao mar, e lá vai balada -, e isso também foi uma "influência estilística", segundo o realizador. Como navegação sensorial, há momentos de intensidade explosiva em Spring Breakers; outras de abandono. E há momentos em que estamos com o filme e em que desistimos dele, para depois o apanharmos à frente. E apostando tudo nas superfícies, há também a eterna dúvida se não será superficial a proposta de gozo, susto e abjecção. É tudo isso, é potente e grotesco. Falta talvez o lirismo de Gummo (1997), mas o mundo é outro.

Marco Bellochio desperta fantasmas

O filme começa a terminar, as imagens, até aí sempre escuras, nocturnas, começam a poder conviver com a luz, porque as personagens despertam de um sonho febril. É isto o que acontece ao espectador de Bella Addormentata, de Marco Bellochio (concurso), também - essa é a forma mais fiel de descrever a experiência que é ver este filme, o nevoeiro e a contradição, o tumulto, e depois uma clarividência que não se explica, a sensação que vem depois do cansaço, depois da intensidade.

Bellochio acabara de juntar uma série de personagens de ficção à volta de um caso verídico, o de Eluana Englaro, que ficou em estado vegetativo devido a um acidente, em 1992. Durante 17 anos, o pai solicitou às autoridades italianas permissão para interromper a alimentação intravenosa, de forma a que a filha pudesse morrer "naturalmente". Em Fevereiro de 2009, uma sentença judicial autorizou-o, depois de outras decisões em sentido contrário, e o caso tornou-se ponto de discórdia entre defensores e opositores da eutanásia.

É para esses dias frios de Fevereiro de 2009 que Bellochio reenvia o espectador. Para um grupo de personagens com uma Bela Adormecida no centro (na verdade, vários adormecem e vários acordam neste filme): Tony Servillo é um parlamentar solicitado a seguir a fidelidade a Berlusconi, que acolheu o seu projecto de carreira política, e por isso deve votar contra a eutanásia, mas a sua consciência está noutro lugar - como noutro lugar ainda está a consciência da filha, que se manifesta ardentemente pelo movimento pela vida frente à clínica onde Eluana está internada (há um caso na família deste pai e desta filha, o da mulher e mãe, que, o filme revela depois, foi em tempos "ajudada" a morrer); Isabelle Huppert é uma actriz com ares de grande que abandonou a sua arte para esperar que a própria filha também desperte do coma - não é crente, mas coloca todo o seu know how na construção da sua persona, a de actriz-santa, que se sacrifica, que desfia a sua vida como um rosário à espera de que o milagre aconteça; e há quem, pura e simplesmente, queira acabar com a vida.

A pedra de toque deste intenso Bella Addormentata é a forma como Bellochio vai passando de uma personagem para outra como se uma lógica onírica, febril, assegurasse por si só a coerência do edifício cinematográfico. A determinação da mise en scène é desencadear um encontro com pesadelos e fantasmas que fazem vigília na sociedade italiana. É verdade que alguém diz: "Não há Governo sem Vaticano." Mas é só fazer as alterações convenientes e a tirada deverá dizer respeito a todas as sociedades onde à Igreja Católica foi concedida plataforma de intervenção social, política e psicológica - logo, de dar forma a fantasmas.

Manoel de Oliveira e a sua sombra

Claudia Cardinale fala de uma experiência de apenas "25 dias", o que é raro num filme, "porque é sempre um mês, um mês e meio", e recorda uma "energia incrível" - Manoel de Oliveira e a rodagem de O Gebo e a Sombra.

Michael Lonsdale, que no filme faz as continhas da vida familiar para não deixar extravasar a pobreza (e não querendo deixar extravasar para a mulher, Cardinale, a verdade sobre o filho ausente, cujo regresso paira como benesse e ameaça), falou de um cineasta que teve a "gentileza" de chegar ao pé dele e dizer que não dirigia os actores porque eles sabiam melhor o que fazer. O Gebo e a Sombra, exibido em Veneza fora de concurso, foi "um dos filmes mais simples" - no sentido de algo "sem pretensão" - que Cardinale rodou em toda a sua carreira de cerca de 180 filmes.

Luís Miguel Cintra, que poderá falar de Oliveira como nenhum dos outros, referiu-se à génese da última obra do cineasta, a peça de teatro de Raul Brandão, e à forma como o realizador permite que o presente ecoe nesse texto de 1923: uma peça sobre a pobreza passou a ser um filme "sobre o poder do dinheiro", algo que está de tal forma interiorizado no nosso quotidiano que todas as relações humanas ficam contaminadas. Isso, segundo Cintra, que esteve ontem em Veneza, com Cardinale e Lonsdale, a lançar O Gebo e a Sombra (o cineasta não compareceu), torna o filme "mais actual" do que o texto de Brandão.

Retoma-se aqui o prenúncio de apocalipse que estava enjaulado em A Caixa (1994), talvez um dos filmes mais mal amados de Oliveira. Tinha texto de Prista Monteiro e um teatrinho cruel metido em escadinhas lisboetas - um cenário "natural" tornado palco e artifício. Era a família, ou um pequeno grupo, como viveiro de qualquer coisa de desesperado e carnívoro, pois sobre esse habitat se abatiam as tensões e a crueldade do mundo. O novo filme regressa a um pequeno grupo enjaulado, com o final de um mundo a ler-se nas nuvens - a pobreza debilita a capacidade de sonho, também.

Várias vezes a tonalidade aguçada normaliza-se numa rotina menos severa, mais abandonada, com registos intermitentes no filme, sendo isso talvez o resultado da forma como cada actor interpreta, sozinho, o que era isso de estar num filme de Oliveira. Será talvez o outro lado daquilo que faz a "modernidade" do cineasta, como revelou Cintra: esse querer que os intérpretes sejam material humano e experiências com as quais quer povoar os seus filmes, sem interferir neles, porque para Oliveira "a vida humana é mais importante do que a ficção".

O Gebo e a Sombra

foi rodado em França e é falado em francês, mesmo pelos portugueses Ricardo Trepa e Leonor Silveira. Como contou um dos co-produtores, Luís Urbano, dos dois projectos que Oliveira lhe apresentou, esse já estava pronto a filmar e traduzido. Martine de Clermont-Tonnerre, a outra co-produtora, explicitou: filmar em França e em francês foi a forma de Oliveira agradecer o apoio dos críticos franceses ao seu

Douro, Faina Fluvial

, apupado na sua exibição portuguesa em 1931.

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