Nenhuma palavra está completa

Na história, quase inteiramente por fazer, dos modos de dizer poesia em Portugal e, mais ainda, dos seus registos em disco, o recente CD-livro de Adolfo Luxúria Canibal, Estilhaços e Cesariny, não é apenas uma obra marcante: é antes um trabalho que resume e exponencia década e meia de explorações em torno da articulação entre poesia e voz, com a decisiva suplementação da música. Podemos fazer remontar estes 15 anos a 1997, ano da edição de Entre nós e as palavras, disco que reproduz gravações (históricas) de poetas editados pela Assírio & Alvim com acompanhamento de música composta expressamente para esse registo; ou a 1998, ano de O horizonte basta, poemas de Helder Moura Pereira e Paulo da Costa Domingos performados por Anabela Duarte; e, por fim, a 2002 e 2006, datas dos dois CD dos Wordsong, dedicados respectivamente a Al Berto e a Pessoa. Esta lista demasiado sucinta não pode deixar de incluir porém a primeira incursão de Adolfo no território da poesia dita, com o CD Estilhaços, de 2006, em co-autoria com António Rafael, para a composição e execução nas teclas, o que permanece de facto na obra mais recente (eis os nomes dos restantes músicos: Henrique Fernandes, contrabaixo, Jorge Coelho, guitarra). Se nesse primeiro registo, cujo título coincide com o da reunião dos seus poemas e letras de canções, está em pauta apenas a escrita de Adolfo, este segundo registo casa o universo de Adolfo com o de Cesariny e, ao substituir no título Adolfo por Estilhaços, talvez para evitar a redundância do seu nome próprio enquanto autor e performer, cria um poderoso efeito de aglutinação do nosso grande surrealista à imagem da poesia como deflagração, ou «estilhaço», que Adolfo reivindica como seu efeito de assinatura, imagem já ela de procedência pelo menos Dada.

Como antes se disse, Estilhaços e Cesariny coroa década e meia de questionação do modelo dominante de dizer poesia em Portugal, e é curioso constatar como este período quase coincide com aquilo que tivemos depois da morte de Mário Viegas, em 1996. Note-se que esse modelo dogmático nada tem a ver com Viegas, como aliás já não tinha a ver com Villaret, falecido em 1961, pese embora o rol das diferenças, e eventuais divergências, entre essas duas figuras maiores. Trata-se daquele modelo que a expressão «leitura branca» veio a descrever e que consiste numa leitura inenfática e avessa a qualquer modalidade de dramatização vocal, numa declaração de fidelidade à letra do texto cuja radicalidade ética só uma performance não-pessoal parece poder traduzir. Curiosamente, esta defesa do apagamento da representação coincidiu com um triunfo esmagador do actor enquanto diseur, como se só o longo treino técnico da voz e dos seus elementos paralinguísticos - intensidade, projecção, altura, inflexão, ressonância, articulação, tempo, etc. - permitisse uma leitura (a leitura «branca») que, no limite, não se distingue da leitura monocórdica, menos surpreendente quando os poetas eles mesmos adoptam esse modelo. Podemos ver aqui uma consequência mais do triunfo e longo prestígio do modernismo nas artes, já que se visa reduzir a poesia a um puro fenómeno mental, o que o esmagador triunfo moderno da lógica do impresso, e da sua correlata “leitura silenciosa”, apenas veio reforçar. Trata-se no fundo de uma posição idealista, que recalca a materialidade da voz em favor da idealidade de um sentido que contudo, e paradoxalmente, só se pode manifestar e endereçar por meio da voz.

A sequência de 15 anos de explorações que os discos de Adolfo culminam veio pôr em causa os fundamentos desse modelo de dizer, ou a sua alternativa musicada “admissível”, o Lied, por compositores da área da música contemporânea. Se no limite estas adaptações podem chegar à canção, em formato pop alternativo e muito experimental, como nos dois grandes discos dos Wordsong, o que define grande parte destes registos é a sua resistência ao formato canção e a manutenção do texto na linha da frente da emissão sonora, mas numa paisagem agora redesenhada entre o musical e o sónico. No disco anterior de Adolfo e António Rafael apenas uma vez a canção emergia, em White Light / White Heat, com bateria e um fio de melodia a culminar em refrão, único momento em que Adolfo passava da declamação ao canto (se admitirmos que Adolfo canta). Estilhaços e Cesariny nunca chega a tanto, apresentando porém um menu de opções de uma rara riqueza. O Orçamento Geral do Estado, tema com que o CD abre, é um longo poema em que Adolfo revisita, de um modo deveras convincente, as coordenadas da poesia “de percurso” de Cesário, num devaneio lisboeta no eléctrico que vai “dos Prazeres até à Graça” (a via sacra de uma certa luxúria canibal moderna). No início, quando a cena do devaneio é descrita e lançada, o acompanhamento de Rafael ao piano toma a forma de breves frases em ostinato, com guitarra esparsa, numa indecisão que a partir do minuto sete se resolve numa frase longa e espraiada ao piano, de uma melancolia saturada, acompanhando o momento mais descritivo e mesmo narrativo do poema, com a vasta teoria de personagens lisboetas que Adolfo representa na voz, reproduzindo por vezes frases soltas e restos de conflitos apanhados por quem passa no eléctrico. A partir do minuto 13, com o regresso do texto ao local de partida, piano e guitarra regressam também ao ostinato inicial mas agora em débito mais poderoso e, assim que a voz sai de cena, entregam-se a um longo fade pontuado por quase-explosões de uma guitarra em pulsão rock.

A faixa dois, O justo equilíbrio / Florestas sem música, em acompanhamento com percussão programada, guitarra e teclas em fundo, ou Londres (questão de ambiência), texto em prosa debitado sobre um fundo de tapeçaria sónica centrada, numa vez sem exemplo, nas malhas de uma guitarra noisy, são os pontos extremos de convivência da palavra dita por Adolfo com uma linguagem musical assumidamente eléctrica. De resto, os poemas de Cesariny são objecto de um tratamento no qual a gestão do silêncio, do eco (dos instrumentos ou da voz), de um registo da voz que vai do sussurro intenso à proximidade do grito, se casa com um formato que oscila entre a estrutura da canção e a da suite, explorando progressões ou andamentos. Desse ponto de vista, a gestão desses andamentos revela uma leitura profunda e inteligente dos poemas de Cesariny, decompondo-os em blocos, propondo pausas, intensidades e clímaxes, repetindo mesmo parte dum poema (caso de Voz numa pedra) e, nesse caso, repetindo, com variação, o acompanhamento musical. Estamos pois longe de uma mera restituição de poemas, já que a música não só acrescenta como reordena e reconfigura os textos de base, num sentido performativo e, literalmente, espectacular (e nenhum caso o é de modo tão flagrante como You are welcome to Elsinore, cujo teor de hino sofre o upgrade da exaltação com que Adolfo, induzido pelo ritmo acelerado por Rafael, debita o verso pré-final: “só espasmos só amor só solidão desfeita”). Note-se ainda a inteligência com que se harmonizam os textos dos dois autores, no sentido de uma intensificação da experiência (a poesia caminhando adiante da acção, como no Rimbaud citado em Voz numa pedra), o que passa por textos do “quotidiano” de Adolfo ou pelos grandes poemas de amor de Cesariny, culminando no poema A Antonin Artaud. Um tour de force musical e vocal e conclusão perfeita para o disco, numa progressão que vai da exasperação à raiva quase gritada e, por fim, em momento de um intenso lirismo musical no piano de Rafael, à promessa de um acordar, numa idade “em que serão esquecidos por completo / os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas”.

Para lá de tudo isto fica a voz de Adolfo, dando a ver a verdade profunda do ventriloquismo de toda a voz, como pretende Mladen Dolar: algo que vem de um sítio não visível e cujos efeitos estão sempre para lá de toda a causação corporal. Um timbre único, uma intensidade reforçada pela inteligência da gravação que lhe dá uma projecção muito íntima (um efeito mais notório em audição iPod), mas sobretudo uma intensidade no débito “natural”, treinado longamente no palco da cena rock. Sem receio de tentar dar corpo à incompletude, e ao radical silêncio, de toda a palavra (Cesariny: “nenhuma palavra está completa / nem mesmo em alemão que as tem tão grandes”).

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