A intensidade de Bon Iver perante um Coliseu eufórico

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Miguel Manso

Isto estar a acontecer não parecerá totalmente despropositado ao homem que tanta curiosidade gerou nos últimos Grammys, ganhando um par de prémios e, com a sua barba desgrenhada e casaco coçado, assomando como bem-vinda novidade naquele ambiente de opulência assegurada por casas de modas da moda. Mas algo assim poder acontecer seria uma ideia absurda, uma absoluta impossibilidade, para o homem que há uns anos se refugiou numa cabana em montanha americana para curar uma doença e um coração partido, de lá saindo com um álbum, “For Emma, Forever Ago”, que iniciou o percurso que, depois da edição de “Bon Iver, Bon Iver”, conduziu a isto a que assistimos.

Isto é a noite de terça-feira, dia em que Justin Vernon, criador de Bon Iver, se estreou em Portugal num Coliseu esgotado e, mais que esgotado, transbordante da euforia habitualmente reservada a ídolos pop ou figuras com culto maturado ao longo de, pelo menos, três gerações.

As canções de Justin Vernon escondem no seu âmago a voz de um trovador de intimidades, de dores de coração, de frustração perante as angústias com que a vida, inevitavelmente, nos presenteia. As canções que os Bon Iver mostram em concerto, hoje, mantêm essa carga emocional que, arriscamos, será uma das razões para tocarem tantos tão profundamente. Mas são mais. Mais intensas, mais recheadas de elementos e mais abertas à experimentação, à descontrução, à procura de formas inesperadas de atingir um mesmo efeito - essa carga emocional que desarma quem ouve.

Em palco, inicialmente, estava apenas Justin Vernon. Enquanto os restantes músicos ocupavam as suas posições, ele estava recolhido no centro do palco, sobrepondo camadas de voz digitalizadas em “vocoder” nessa “Woods” que Kanye West samplou em “Lost in the world”. Ali estava então Vernon, com a discrição como impossibilidade quando tudo à volta era um ruído de gritos ensurdecedor. Sobre ele, o desenho de palco, qual gigantesca rede de serapilheira que, conforme o jogo de luzes, nos pareceriam teias num celeiro ou vegetação pendendo das árvores de uma floresta imaginária. Dispostas no chão, uma série de luzes em forma de vela que dariam um certo tom cerimonial ao concerto. Mas foi quando Vernon se ergueu e quando “Perth” se anunciou que vimos verdadeiramente.

Nove músicos em palco, uma imensidão em que se incluem duas baterias, metais, pianos e sintetizadores, violino e os obrigatórios baixo e guitarras. Uma banda talentosa e ensaiadíssima que deu corpo imenso a canções que são folk de coração, um épico rock em atitude e uma experiência sónica em que cabem turbilhões de electricidade, uma visão pop dos anos 1980 devidamente distorcida, e, sempre, essa vontade de fazer das muitas melodias vocais uma partilha comunal que se estenda ao público.

Torna-se difícil resistir, de facto, à forma como esta banda procura chegar a um auge de intensidade que transporte consigo o público. Ainda para mais quando o faz sem seguir o caminho mais fácil: vimo-los a esventrar a belíssima “Flume”, no início do concerto, com uma barreira de ruído, ou a oferecer a Colin Stetson (o seu currículo inclui, por exemplo, Tom Waits e Arcade Fire) a entrada em “Blood bank” - seu saxofone arrepiou naquele zumbido tétrico que desembocaria em rock'n'roll com a voracidade do “Hey hey (my my)” de Neil Young.

É certo que este era um concerto ganho à partida, como constatou aquele que, surpreendido com o volume estridente e incessante dos gritos, exclamaria um cómico “mas isto é o Justin Bieber ou quê?” Não era de todo Justin Bieber. A devoção dos fãs pode ser comparável em decibéis, mas não há no concerto nada de mecânico, nem sinais da formatação musical à lógica industrial da cultura de massas. E por isso, mesmo sendo este um concerto ganho à partida, com aplausos irrompendo a meio das canções, não houve sinais de acomodamento.

Justin Vernon confessaria a determinado momento que aquela estava a ser, “de longe”, uma das noites mais memoráveis da sua vida e, na verdade, pareceu uma declaração sincera. Tal, porém, não o desviou do essencial. Terminada “Flume” e antes de “Towers”, Justin Vernon dirigiu-se ao público pela primeira vez. Rematou as palavras de circunstância habituais com algo como isto: “bem, vamos apenas continuar a tocar as canções”. Assim o disse, assim o fez.

Barba substituída por patilhas imponentes, Vernon cantou da soul rarefeita de “Wash” - aquele registo, no limite do falsete, é perfeito para ela -; fez-se ouvir sobre o bombo ribombante de “Holocene”; interpretou a solo, à guitarra eléctrica, “re: Stacks” e interrompeu sem constrangimentos uma “Skinny love” que tivera arranque em falso - “não somos assim tão profissionais”, comentou entre risos; “g'anda boss”, ouvimos exclamar uns metros à nossa frente. Quem assim o classificou estava absolutamente correcto.

Só um “g'anda boss” faria algo como “Beth/rest”, a última antes do encore, canção para vocoder e sintetizador ambiental que escorre azeite por todos os poros e que nos leva a imaginar que, a qualquer momento, Phil Collins irromperá em palco para cantar “In the air tonight”. É bonito vermos as nossas estrelas seguirem o seu coração sem medo do ridículo. Isto, claro, se fizerem o veio depois. Regressados a palco, os Bon Iver puseram o público a cantar com eles o verso “what might have been lost” de “The wolves (act I and II)” e não pararam enquanto as luzes que faiscavam num frenesim de flashes tivessem tradução na muralha de som erguida metodicamente. Para despedida, o recolhimento. O regresso às origens com o country-rock gracioso, animado por guitarra slide, sax e trombone, de “For Emma”.

Justin Vernon veio a Portugal para tocar apenas umas canções mas aquele “apenas” é enganador. A intensidade do concerto, o gosto pelo risco, o desejo de partilha e o talento daqueles que o acompanham resultam em mais que essa humildade. A confirmar esta quarta-feira no Coliseu do Porto ou, a 26 de Outubro, no regresso de Bon Iver a Lisboa, desta vez para um concerto no Campo Pequeno.

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