O cão que dá nome ao novo filme de Lawrence Kasdan - um rafeiro abandonado recolhido pela esposa de um médico de Denver e que foge durante um fim-de-semana nas Montanhas Rochosas - não é, obviamente, um cão. Ou antes: sim, é um cão, mas em termos narrativos é um macguffin, um pretexto para que o realizador e argumentista americano regresse àquilo que melhor sabe fazer: contar histórias sobre gente em momentos-charneira, forçada a olhar para a vida de modo diferente devido a um acontecimento inesperado. Ceci n''est pas un chien, portanto, com o devido respeito pelos amigos dos animais, entre os quais nos contamos.
Faz sentido, Kasdan sempre foi alguém que invocou as virtudes sólidas do argumento e da construção narrativa do cinema clássico americano como base do seu cinema. O seu nome continua a ressoar nas memórias cinéfilas graças, primeiro, aos seus argumentos para a dupla Steven Spielberg/George Lucas (por ordem de entrada em cena: O Império Contra-Ataca, Irvin Kershner, 1980; Os Salteadores da Arca Perdida, Spielberg, 1981; O Regresso de Jedi, Richard Marquand, 1983) e, depois, como argumentista e realizador de uma sequência-chave de filmes da década de 1980: Noites Escaldantes (1981), Os Amigos de Alex (1983), Silverado (1985) e O Turista Acidental (1988). Só que, de então para cá, aquele que foi visto como um digno herdeiro das virtudes narrativas do cinema clássico americano viu-se progressivamente “encostado às cordas”, à medida que o seu cinema naturalista e ancorado nas personagens era ejectado dos mapas de produção dos estúdios pelos blockbusters com um olho nos miúdos e outro no dinheiro. Nem o triunfo comercial de O Guarda-Costas (Mick Jackson, 1992), um argumento que tinha em gaveta e reformulou enquanto produtor à medida de Kevin Costner e Whitney Houston, o safou: a última vez que o vimos atrás da câmara foi numa esquizofrénica adaptação de Stephen King (O Caçador de Sonhos, 2003) que, vista à distância, não passava de uma tentativa falhada de se adaptar, sem sucesso, aos “tempos que correm”.
Daí que Fiel Companheiro recuse teimosamente quaisquer modernices ou modernidades e seja um filme que assume a sua idade e, sobretudo, a idade de quem o faz. Freeway, o cão, desaparece logo a seguir ao casamento da segunda filha de Beth e Joseph, ela uma mãe de família frustrada, ele um médico absorvido pelo seu trabalho, e é o pretexto para um “ponto da situação” de gente que começa a sentir-se “excedentária”. Ecoando O Coração da Cidade (1991), é um filme feito à medida das forças de Kasdan: uma comédia dramática de conjunto, onde o elenco de absoluto luxo (Diane Keaton luminosa, Kevin Kline, Dianne Wiest, Richard Jenkins, Sam Shepard) ferra os dentes com gosto em personagens que transcendem o arquétipo aparente e ressoam com a energia da vida real e das suas emoções complicadas. Só por isso, perdoamos ao cineasta a facilidade de algumas soluções dramáticas (a governanta cigana de Ayelet Zurer está paredes-meias com o folclore), mesmo que seja um bocadinho triste ver que o low-budget não lhe fica muito bem (há um ou outro plano apressado, alguns raccords salvos in extremis na montagem). Fiel Companheiro é um regresso a meio-gás que confirma Lawrence Kasdan como um cineasta desfasado do momento actual. Mas, face ao que Hollywood nos anda a querer vender, isso não é forçosamente mau.