As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath) é um romance de John Steinbeck (1902-1968). Publicado em Abril de 1939, decorre durante a Grande Depressão que teve início em 1929 nos EUA e que, nesse país, provocou um desemprego de 25% e um abaixamento de salários a mais de 30% dos americanos. O romance desenvolve-se a partir de um núcleo central, a família Joad, que conta com 12 membros e é liderada por um ex-prisioneiro (Tom Joad). Esta família vê-se de um dia para o outro despojada do seu trabalho agrícola em Oklahoma e obrigada a emigrar para a Califórnia, indo engrossar o êxodo de um milhão de desempregados em busca de trabalho na Costa Leste. Percorrem cerca de 2.500 quilómetros num velho Hudson transformado numa carrinha, seguindo filas e filas de outros carros durante vários dias. Há mortos e desistentes pelo caminho. A viagem é um teste à família como organização democrática e também, como vários especialistas em Steinbeck afirmam, a evocação do grande êxodo bíblico liderado por Moisés fugindo do Egipto - só que, neste caso, a Terra Prometida é a Califórnia e surge também como terra de decepção. As Vinhas da Ira apresenta uma escrita realista resultante da própria experiência de Steinbeck que, em 1937 e 1938, trabalhou ao lado de migrantes na apanha de fruta. Entre os 30 capítulos que constituem esta obra, alguns têm a particularidade estilística de descreverem situações comerciais, transportes ferroviários ou paisagens, dando aos acontecimentos romanescos um horizonte que contextualiza realisticamente o romance.
Com As Vinhas da Ira, John Steinbeck ganharia o Prémio Pulitzer (em 1962, haveria de ganhar o Nobel). Porém, tal não impediu (porque haveria de impedir?) que se fizesse uma forte campanha de descrédito do autor, promovida pela associação americana dos grandes agricultores e com a cumplicidade de vários meios de comunicação - que o acusavam de querer destruir a legitimidade do "sonho americano".
Lembro-me de, adolescente, ter lido As Vinhas da Ira e de pensar naqueles milhares de deserdados das terras atravessando a América, pobres, maltrapilhos, morrendo de frio e de fome, descalços, entre a poeira e o silêncio de filas intermináveis de camponeses em busca de um dia, dois dias de trabalho. Lembro-me da expulsão dos trabalhadores dos campos pela introdução dos tractores que substituíam o trabalho de dezenas de homens; e recordo que era com algum alívio que olhava essa América de trabalhadores famintos e deserdados como uma terra longínqua no espaço e, sobretudo, no tempo.
Anos depois, ao ver o filme de John Ford, realizado em 1940 (com Henry Fonda no papel de Tom Joad), retomei essa sensação de assistir a uma Odisseia de "excluídos" que nos era dada pela cenografia e pelos figurinos da época. O filme tornou-se um êxito hollywoodesco, porventura porque uma parte da América quis prestar um tributo a esses migrantes, tão semelhantes aos que a tinham desbravado séculos antes.
Por cá, pela Europa, os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes ou os filmes do neo-realismo, em especial os Ladrões de Bicicletas de Vittorio De Sica, numa escala mais pequena, já nessa época eram lidos ou vistos pela sua qualidade literária, pela inovação no género, pela estética das imagens. Eram, sobretudo, testemunhos de uma época.
Hoje, algo de impreciso mas que se impôs como urgente fez-me regressar à leitura de As Vinhas da Ira. Ao acabar de o ler, algo de profundamente inquietante habita as semelhanças: onde dantes os bancos se apropriavam das terras e das casas, hoje apropriam-se dos apartamentos de gente que não consegue pagar o empréstimo e a hipoteca; o número de despedidos aumenta diariamente e já não das terras, que há muito não têm lavoura quase nenhuma, mas das fábricas, das escolas, de empresas de serviços. Há já famílias que começaram a sua caminhada para o interior, onde o que restará de uma terra pode ser a hipótese de sobrevivência, ou então que emigraram para el dorados - como se vislumbrassem a Califórnia - que agora se chamam Brasil, Angola, Moçambique, Chile, México.
São 800 mil desempregados em Portugal, quatro milhões em Espanha, um milhão e cem mil na Grécia. O cenário não tem a espectacularidade de As Vinhas da Ira; a estrada 66, a do êxodo, foi substituída por auto-estradas menos poeirentas. As pessoas não caminham andrajosas, mas sabemos que se vestem com as mesmas roupas dias seguidos e que as refeições que tomam não permitem nem descrições literárias nem as imagens focadas da película. Mas, muitas vezes, já são apenas duas por dia para toda a família.
Acabo de ler o romance e constato que, para muitos, houve um retrocesso civilizacional; e que não há literatura que o salve.
É aqui que surge a impotência da cultura literária - e o desejo de que As Vinhas da Ira fossem apenas ficção, então como agora. E o desejo de que aqueles que podem alterar isto lessem este e outros romances, tomassem consciência, agissem como protagonistas sobre a História, alterassem o estado de sítio.