De volta ao filme negro americano, vamos abordar esta semana “The Big Heat”, chamado em Portugal “Corrupção” e estreado no país de origem em 1953 (os espectadores portugueses só o puderam ver nos cinemas dois anos depois). Mais uma vez, é interessante verificar que, independentemente do tema, até mesmo do realizador, há nestes filmes das décadas de 30 a 50 um ingrediente que, do meu ponto de vista, contribui para um tom final de encantamento, que é, além da conjugação de artistas das mais variadas especialidades — muitos deles no seu auge — as soluções encontradas para tratar de temas controversos, incómodos ou proibidos, de forma a poder seguir-se, claramente, o essencial da questão de fundo, enquanto se tenta esticar ou contornar os condicionamentos a que os criadores estavam submetidos no que diz respeito ao que se podia mostrar ao público. Entre essas soluções encontramos o recurso ao simbolismo, a realidades esquemáticas, a elisões, a representações por ocultação de imagem que, no caso da violência, por exemplo, surpreendentemente aumentam a intensidade da experiência do espectador, em vez de a diminuir.
Este jogo de “gato e rato” de bastidores adequa-se perfeitamente a outro jogo que se lhe assemelha, o da investigação e perseguição policial aos fomentadores e beneficiários da corrupção, infelizmente sempre actual, “tomando sempre novas qualidades”. É aqui que entra o sargento Bannion (Glenn Ford), do Departamento de Homicídios da polícia, cujas diligências encetadas a propósito do suicídio de um colega se vão desenvolvendo de modo a proporcionar aos espectadores uma visão clara da teia de corrupção local, enquanto o detective Bannion na mesma se enreda mais e mais.
É tudo simples e esquemático: a vida pacata e económica do casal Bannion, os testemunhos simbólicos da sua comunhão — dividem o mesmo cigarro, a mesma cerveja, a comida do mesmo prato —, o amor pela filha pequena; a rede de influências e interdependências que, por contraponto, primeiro ameaça e depois desfaz este “idilicamente natural” viver. A investigação de Bannion às movimentações da rede de corrupção que tem no seu topo Mike Lagana — que controla o comissário da polícia, que, por seu turno, controla o tenente que comanda a esquadra em que Bannion trabalha — acabam por lhe custar a perda da mulher (Jocelyn Brando, irmã de Marlon Brando). A sua reacção a esta perda e a revolta de Debby (Gloria Grahame), namorada de Vince (Lee Marvin), um dos membros do bando de Lagana, são as frentes externa e interna, respectivamente, da guerra que derrota o grupo.
Embora Glenn Ford não seja um dos meus actores preferidos, por sentir que lhe falta qualquer coisa que, por exemplo, William Holden poderá ter mais à mão, e de achar que a sua melhor interpretação é em “Gilda”, que já tratámos aqui, há uma construção de felicidade conjugal ideal que raramente se encontra tão bem representada e que me traz a memória essa outra que encontramos em “Panic in the Streets”, da responsabilidade do realizador Elia Kazan e dos actores Richard Widmark e Barbara Bel Geddes. Já quanto a Gloria Grahame, que também não está na constelação dos grandes de Hollywood, actriz que encontrámos em “In a Lonely Place”, contracenando com Humphrey Bogart, poderá ser este papel em “Corrupção” a sua melhor interpretação. E é certamente a mais famosa. Tão famosa, de facto, que muitas vezes quando se quer que as pessoas com quem conversamos se lembrem imediatamente do filme de que estamos a falar, dizemos apenas: “Aquele filme em que a Gloria Grahame apanha com o café a ferver”. Mas também poderíamos dizer, se as pessoas memorizassem com a mesma facilidade, que é o filme em que num bar alguém toca ao piano a canção “Put the Blame on Mame”, emblemática de “Gilda”, que tinha no papel principal o mesmo Glenn Ford que está em cena. Uma gracinha num ambiente violento...