Profissionais da cultura: eles são precários, intermitentes e lutam contra o preconceito

Dos 120 mil profissionais da cultura em Portugal estima-se que 90% trabalhem a recibos verdes. É um sector esmagado pela precariedade a trabalhar de forma intermitente. Exigem mais do Estado. E querem acabar com o preconceito

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Rui Gaudêncio/arquivo

Era o terceiro dia de trabalho à experiência. Se tudo corresse bem, assinaria um contrato dentro de uma ou duas semanas. Mas o erro fatal já Margarida Barata havia cometido na tarde anterior – na mesma em que conseguiu fazer as suas primeiras vendas, decidiu, em conversa casual, comentar com a gerente da loja o que fazia fora dali. Margarida era actriz.

O terceiro dia foi também o último. A gerente da loja de relógios onde Margarida estava à experiência chamou-a para um café e disse-lhe que ela não tinha talento para vender, que talvez fosse melhor dedicar-se àquilo em que era mesmo boa: ser actriz.

Passaram oito anos desde este episódio. Margarida Barata olha para trás e não tem dúvidas: “Foi preconceito.” Se as coisas mudaram? “Não. Hoje não só continua a acontecer como está pior. Dá ideia de que a nossa formação não serve para nada.”

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Joana Barata é música, com uma especialização em piano DR

A jovem de 33 anos não está sozinha nesta teoria. António Alves Vieira, também actor, faz eco: “Vivemos num país onde não só há um grande desinvestimento na cultura como há um desrespeito total pelo direito social que é a cultura e pelos artistas.” Há muito que a crise se tornou o cognome de todo um sector. Falar dos 120 mil profissionais da cultura que se estima que existam em Portugal, é falar quase sempre de pessoas a viver na precariedade e acrescentar-lhe um mal de que a esmagadora maioria sofre: a intermitência.

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Margarida Barata é actriz Miguel Godinho

Palavra ao Sindicato dos Músicos, dos Profissionais do Espectáculo e do Audiovisual (CENA): “Cerca de 90% dos trabalhadores da área trabalham a recibos verdes.” É um sintoma do cenário cultural, onde “há cada vez menos sítios onde se possa trabalhar a contrato e onde essa premissa quase já não faz parte das regras do jogo”, lamenta André Albuquerque, membro do CENA.

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Bruno Ribeiro é músico com especialização em composição e viola DR

António Alves Vieira admite que “viver sem futuro” está a levá-lo a um nível de saturação. Ser actor, diz o jovem de 24 anos, é uma “profissão de manutenção”: “Nunca dá para juntar, dá para viver - e mal.”

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Joana Barata é música, com uma especialização em piano DR

A lei dos intermitentes, com alterações à Lei 4/ 2008 (pdf), aprovada ainda no Governo de José Socrates, deu algum alento ao sector. Mas o “registo profissional” necessário para que a lei entrasse em acção não foi feito até hoje. “A Secretaria de Estado da Cultura prometeu há três semanas que o registo ia avançar até ao final de Junho”, informa André Albuquerque em jeito de esperança.

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Margarida Barata é actriz Miguel Godinho

Joana Barata e Bruno Ribeiro são músicos - ela com uma especialização em piano, ele em composição e viola. Perceberam há algum tempo que viverem só como músicos não era viável. Hoje podem dizer que venceram uma das barreiras da profissão: “Já não é trabalho intermitente, mas ainda é precário”, diz Bruno Ribeiro, 29 anos.

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Bruno Ribeiro é músico com especialização em composição e viola DR

São as aulas que ambos dão que lhes permitem assumir este estatuto – uma “actividade paralela” que muitos profissionais da cultura adoptam. Vivem ano a ano, tal como o tempo de vida dos contratos, e são pagos a recibos verdes. Mas encontraram no ensino a almofada que lhes permite continuar a serem músicos – é que os espectáculos são descontinuadas e o investimento (compra e manutenção de instrumentos) é enorme.

Os cortes no sector cultural, avalia o CENA, são de uma “brutalidade extrema” e as companhias só continuam a existir “pelo esforço de cada pessoa”. Se em 2010 a Direcção Geral das Artes (DGArtes) cortou 20%, em 2011 o corte é de 37%.

A nova Lei do Cinema, aprovada a 31 de Maio em Conselho de Ministros, foi um passo em frente, há muito exigido pelos agentes do sector. Para André Albuquerque, apesar de ser uma decisão importante, é um sinal de que o Governo continua a “descartar a sua obrigação de oferecer cultura de forma democrática”, uma vez que será através de uma taxa de TV Cabo, paga pelo consumidor, que o financiamento vai ser possível.

Para todo um sector é a possibilidade de ser profissional que está em causa, acredita o CENA. “Temos gente que ganha perto do salário mínimo nacional, muitos sem remuneração; outros que trabalham e esperam o retorno da bilheteira. Isto já as torna quase amadoras e não profissionais”, argumenta André Albuquerque.

Actualmente, o orçamento para a Cultura representa 0,1% do Orçamento do Estado - um valor que tem vindo a tornar-se “habitual”, com excepção dos “anos dourados, com [Manuel Maria] Carrilho no Governo, quando se chegou à barreira do 1%”.

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