A sala está mais vazia do que as ruas da vila no centro do país, mesmo que não se tenha avistado vivalma na tarde de um sábado de Maio, sábado quente a pedir resguardo. O silêncio é interrompido pelo canto de um galo que, tardio, parece acompanhar o som mudo produzido pela pianista, de boca em esgar e movimentos torcidos. O minúsculo piano vermelho onde tocará, curvada, vai marcar o tempo de três bailarinos que parecem vindos, precisamente, de outro tempo. E, por isso, agindo como se vivessem condenados a repetir, de vila vazia em vila vazia, os mesmos gestos para plateias de um espectador.
27 Ossos estreia hoje no Espace 1789, em Saint Ouen, na região parisiense, integrado no festival Rencontres Chorégraphiques Internationales Seine-Saint Denis. A nova peça de Tânia Carvalho, que o PÚBLICO viu num ensaio no início do mês de Maio no Cine-Teatro São Pedro, em Alcanena, é o regresso da coreógrafa ao festival que abriu no ano passado com uma peça para 20 bailarinos chamada Icosahedron, e que venceu o Prémio SPA/Autores 2011 para Melhor Coreografia.
Num gesto raro na história da mais importante plataforma de dança francesa, este regresso é também a oportunidade de Tânia Carvalho mostrar aos programadores que não a conheciam que o que os impressionou no ano passado não é fruto de um acaso, mas de um labor dedicado e, nas palavras de Anita Mathieu, directora artística do festival, resultante “de uma escrita singular, muito original, que não se reconhece nas actuais correntes da dança contemporânea nem cede a modas que esmagam os criadores”.
Uma peça sem tempo
Falamos à coreógrafa da sensação com que ficámos ao ouvir o galo no eco da sala vazia e como isso deu à peça aquilo que Tânia Carvalho define como “um tempo antigo” e ela devolve-nos a imagem, dizendo que esta é uma obra “que vive assombrada pela memória”. Interpretada pelos bailarinos Luís Guerra, Luiz L. Antunes e Sandra Rosado, e pela pianista Joana Gama, 27 Ossos, tantos quantos os de uma mão, mostra como o que antes era visto como materialização do grotesco se sustenta, afinal, num humor negro, num movimento que se vai rarefazendo e num sentido dramatúrgico de imprevisível derrisão.
“É uma peça que nos faz perder a noção do tempo e que perde a sua própria referência linear”, explica a coreógrafa, falando de “zonas da memória que falham” e de “movimentos que surgem no lugar de outros, tornando mais fortes partes que eram mais fracas”. É mesmo, diz a rir-se, “uma peça assombrada”.
A coreógrafa fala pouco das suas criações. Dir-se-ia que é uma das suas imagens de marca, se não fosse apenas natural. “A ideia foi surgindo assim”, resume, como se fosse simples. Tânia tem dificuldade em lidar com os preceitos habituais do modo de produção dos espectáculos e com as exigências que não têm directamente a ver com a peça: a sinopse que a explicará, a fotografia que servirá de chamariz, as entrevistas que a fazem sair da energia que coloca nas notas dadas aos intérpretes, os comentários que recebe e que lhe perguntam como e porquê, e depois os prémios, as digressões, as conversas com programadores, o planeamento o que se segue. “Por mim estaria sempre a coreografar.” Em silêncio, distante, de vez em quando irrompendo, como a sombra, o vulto que surge nas laterais do palco, sem se saber se é ilusão ou realidade, e que na verdade é a própria coreógrafa, a observar.
Tânia Carvalho é muito precisa no que procura, percebe-se depois. A exigência do seu movimento só pode justificar-se com um conhecimento profundo das capacidades dos bailarinos, não hesitando em exemplificar o que pretende, muitas vezes usando o seu próprio corpo e, outras, esperando que o bailarino se vá aproximando até lhe parecer íntimo o que antes era estranho.
É um processo de adaptação que tem tudo a ver com a memória que ocupa, nesta peça, um lugar fundamental. Os movimentos dos bailarinos remetem, por vezes, para as construções angulosas de Martha Graham, e o modo como desenham figuras num espaço negro faz lembrar um outro tipo de surrealismo, menos premeditado, como o de Bertrand Russell. São frases que se vão repetindo, mudando de corpo, já não como em De mim não posso fugir, paciência!, peça de 2000, com a qual poderia fazer um espelho, e aprendendo com as mutações promovidas em Icosahedron. Tânia Carvalho fala de “movimentos exigentes”, de “coisas antigas”, de “duetos e piruetas” interpretados não por personagens mas por “arquétipos”. “É como se a peça já existisse há muito tempo” e, por isso, os bailarinos a interpretassem sem alma, mas num conflito permanente, como num esforço de resgate da sua própria identidade.
Risco, medo e expectativaEsse trabalho sobre a temporalidade é uma das marcas do trabalho da coreógrafa que arrisca, com 27 Ossos, levá-lo a um outro patamar: a de uma peça que comporta, na sua estrutura, a própria sua própria destruição. Essa consciência contribui para “o medo e a expectativa” que Tânia Carvalho sente quanto à recepção desta criação. “Sim, tento não pensar nisso, mas claro que sou consciente do risco que isto comporta.”
É também de risco que fala Anita Mathieu, orgulhosa por poder estrear mundialmente o trabalho de alguém que “muitos não conhecem”. A apresentação, na edição anterior, de Icosahedron, “foi um grande risco”. Era a abertura do festival e Mathieu não tinha visto nada. “A confiança que deposito nas minhas escolhas não me deixa, por si só, descansada”, admite. “O trabalho de Tânia Carvalho era, se não totalmente, quase desconhecido em França. E uma peça com vinte intérpretes não é apenas um risco, é ter o nosso coração nas mãos.” Depois o jornal Le Monde dedicou uma página à peça e muitos quiseram saber de onde vinha esta coreógrafa.
“Muitos acharam que era a minha primeira peça”, diz Tânia. Na verdade, contas feitas, e terão sido mais de 15. Mas quem o sabe? “Para a Europa ainda sou uma coreógrafa nova”, diz. E isso deixa-a “confusa”: “Gosto de estar aqui, mas às vezes sinto que deveria ter saído mais cedo.”
Tânia Carvalho, como Tiago Guedes ou Cláudia Dias, faz parte de uma geração que herdou o caminho aberto por nomes como Vera Mantero ou Paulo Ribeiro, começa por recordar Anita Mathieu, mas “mesmo estes nomes têm hoje dificuldade em entrar na rede de difusão internacional”. “É preciso aproveitar o que está disponível”, diz alguém que em anos anteriores apresentou esses e outros criadores nacionais. Mas, defende, isso não se faz sem “um trabalho sério da parte de Portugal”.
A responsabilidade de Portugal27 Ossos tem estreia mundial em Paris e, depois, apresentar-se-á em Berlim, no Verão. A Portugal só chega em Novembro, ao Teatro Viriato, que é co-produtor e onde a peça esteve em residência nos meses de Abril e Maio (também em Montemor-o-Novo e em Alcanena). Não teria sido possível de outra forma. A estrutura de produção Bomba Suicida, dirigida por Tânia Carvalho, é uma das mais afectadas pelos cortes de 38% nos apoios da direcção-geral das artes. Os artistas deixaram o estúdio que tinham no Bairro Alto, dispensaram elementos da equipa, e, apesar de venderem alguns espectáculos, a balança orçamental não permite acompanhar o salto que representou, em termos de visibilidade, a presença nos festivais internacionais do ano passado.
Anita Mathieu conheceu o trabalho de Tânia Carvalho na Plataforma das Artes, organizada pelo coreógrafo Rui Horta no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, que também dirige. E orgulha-se de poder dizer que foi a partir dos Rencontres que Tânia Carvalho chegou a Berlim e Viena. “É da responsabilidade de um festival revelar nomes, isso dá muito trabalho, mas é vital. Mas não pode ser tudo”, defende-se.
“É preciso apoiar os artistas portugueses ou estes correm o risco de desaparecer do mapa internacional”, alerta a directora da plataforma francesa. “Portugal não faz parte das prioridades da generalidade dos programadores, apesar de haver um interesse pelo que se faz”, reconhece. “É preciso recuperar uma dinâmica, e de um modo urgente, que afirme os artistas portugueses na cena europeia, sob perigo de o seu desconhecimento levar a uma irrelevância”, diz. “Essa tem que ser uma das prioridades das instituições portuguesas”, acrescenta, falando dos teatros e dos apoios do Estado. “A defesa dos artistas é da sua responsabilidade”, diz, acreditando que uma estratégia de internacionalização só poderá existir “se existirem condições para que os criadores possam trabalhar no seu país”. E, para isso, “é preciso vontade política”.
Para Tânia Carvalho, que se pudesse “só trabalharia com grandes elencos”, todas estas questões precisam de estar ao largo da criação que tem em braços. Mas é, reconhece, por onde vai passar cada vez mais o futuro da dança portuguesa. “Dentro e fora de portas”, acrescenta Anita Mathieu.