Kafka sempre fez dormir Philippe Claudel

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MIGUEL MANSO

Depois de O Relatório de Brodeck, Philippe Claudel ficou com a impressão que nunca mais voltaria a escrever um romance. Achava que tinha esgotado todas as possibilidades do género romanesco - que de resto lhe parecia um modelo velho para os tempos actuais.

No entanto, já há vários anos o escritor que recebeu o Prémio Renaudot, em 2003, por Almas Cinzentas (Asa), tinha a intenção de trabalhar sobre o fenómeno do suicídio, enquanto acto individual e também enquanto acto que interroga, por vezes, a sociedade. "Nessa altura reuni exemplos de suicídios colectivos, de membros de seitas, mas também de suicídios muito estranhos, organizados através da Internet, no Japão. Casos de pessoas que se queriam suicidar, contactavam outras que queriam fazer o mesmo e marcavam encontro num lugar preciso onde se iriam suicidar juntos, três ou quatro, no mesmo carro", explica o escritor francês ao Ípsilon em Lisboa, onde esteve a lançar o romance A Investigação (Sextante Editora).

Como ao mesmo tempo, em França, cada vez mais pessoas se suicidavam no local de trabalho, Philippe Claudel pensou que esse podia ser o ponto de partida para o que viesse a escrever. "Falou-se muito da France Telecom, mas aconteceu também na administração do Estado, nas Águas e Florestas, na polícia, na Renault... O fenómeno era novo porque não só alguém se suicidava, como o fazia no local de trabalho, denunciando alguma coisa", explica.

Não sendo jornalista, nem historiador, nem sociólogo, o escritor achou que não teria competências para abordar o tema de outra forma que não através da ficção. Por isso, os seus planos para abandonar o género não se concretizaram. Imaginou então que enviava para uma cidade um inquiridor e tentou segui-lo. Ao mesmo tempo que a personagem prosseguia o seu inquérito, o escritor interrogava-se sobre o género literário que mais se adaptaria a tudo aquilo. "Quis mostrar uma personagem manipulada pelo seu autor e que durante a leitura do livro se atravessassem vários géneros literários. Começa como um romance realista e rapidamente a situação fica estranha, fantástica, e a seguir é quase um conto metafísico ou ficção científica. O inquiridor está completamente perdido e o meu objectivo era passar esse sentimento de perda e atordoamento aos leitores. Como se fosse um homem que está num labirinto e nem sabe sequer se há um Minotauro.

Chaplin e Barton Fink

Há quem veja em A Investigação influências de Kafka mas Claudel acha estranho porque nunca conseguiu ler a obra do autor de O Processo. Iniciou a leitura, mas nunca acabou. Ao fim de umas páginas largava os livros porque se entediava. Na adolescência, lia poesia e romancistas franceses - Maupassant, Zola, Flaubert - ou os clássicos russos. "Kafka sempre me fez dormir. Se tentarmos encontrar influências ou raízes neste livro, é melhor ir ver do lado da gravura de Piranesi ou de artistas que compuseram fantasias arquitectónicas que estavam na moda no século XVIII, ou então ir à obra de um contemporâneo de Kafka: Alfred Kubin", afirma. No plano literário, Claudel reivindica a influência de autores como Jorge Luis Borges, que leu muito durante a adolescência. No entanto, a novidade é tratar-se do livro mais cinematográfico que já escreveu (o escritor é também realizador de cinema e vencedor de dois Prémios César).

"A Investigação mistura Charlie Chaplin, Buster Keaton e o cinema de Jacques Tati. Conta a história de um pequeno homem perdido num mundo absurdo como o que podemos encontrar nos filmes Brasil, de Terry Gilliam, Metrópolis, de Fritz Lang, ou Barton Fink, dos irmãos Coen. Existem mais referências cinematográficas, inconscientes. Só quando reli o livro é que as encontrei", diz. Ao compor as cenas, Philippe Claudel trabalhou aquilo a que no cinema se chama enquadramento. "É um livro que trabalha muito sobre o valor dos planos e muito influenciado pela técnica cinematográfica. Os planos muito largos, os planos muito apertados, a arquitectura da cidade, os décors, a figuração, a montagem das cenas nos diferentes capítulos...", enumera.

Acredita que todas as situações pelas quais o inquiridor passa no romance podem ter já acontecido a qualquer pessoa. "As situações são reais, todos passámos já por elas, num dia ou noutro. O que é absurdo é que elas acontecem todas ao mesmo tempo e ao mesmo homem. O que me deu muito prazer foi manipular a personagem e lançá-la na boca dos lobos. É uma personagem experimental, aliás ela refere-o no livro, quando diz que está a ser objecto de uma experiência. No final parece-lhe estar dentro de um sonho, dentro de um romance, num local em que alguém o vigia permanentemente. Não sei o que se passa em Lisboa, mas em França, agora temos câmaras por toda a parte, estamos sempre sob vigilância. Vivemos numa democracia, mas e se o regime muda e estas câmaras são utilizadas para outro objectivo? Por isso, no livro, estamos num mundo vigiado e este homem é mais uma personagem do que um homem, é manipulado por um autor, alguém que está acima dele."

Há também uma obsessão por espaços fechados: o inquiridor aparece ao leitor num quarto, numa casa de banho, numa sala dos pequenos-almoços, na empresa. "Ele está quase sempre fechado. É o primeiro romance que escrevo em que a natureza não está presente. Não existe nenhuma paisagem natural, o que é estranho porque eu adoro descrever a natureza. No meu romance anterior, o tema era o paralelo entre a natureza e a natureza humana, entre o bem e o mal e a natureza indiferente ao sofrimento do homem. É a primeira vez que escrevo um texto longo em que não há espaço nenhum para ela."

Em vez disso, o mundo fechado da cidade e da empresa: "Estamos numa cidade que tem a mesma dimensão da empresa e numa empresa que tem a mesma dimensão da cidade. Há uma sobreposição da economia no lugar da vida, mas este lugar de vida é um lugar fechado, não há nenhum contacto entre os homens, estão fechados dentro da empresa, de quartos. É o simbolismo do labirinto puxado ao extremo. Em que o homem não é livre dos seus movimentos, está fechado no mundo do trabalho e não existe para além disso."

O protagonista, no início, é um homem que não tem consciência. "É enviado em missão para fazer um inquérito e não coloca nenhuma questão nem sobre a sua missão, nem sobre o inquérito. Com o desenrolar dos acontecimentos, que o vão perturbar, desenvolve uma consciência crítica. Embora ele possa não encontrar respostas esse trajecto, para mim, é uma espécie de alegoria. Uma maneira de dizer ao leitor: ‘Vocês nunca se questionaram sobre o mundo, mas olhem como a sociedade capitalista e liberal que construímos é absurda."

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