"O que te aconteceu, Asma?"
Os media ocidentais tratavam-na como "uma de nós" e agora não lhe perdoam. Afinal, ela é mesmo "uma de nós". "Apagá-la da narrativa ocidental, é impossível. Ela nasceu britânica, não é naturalizada. Ela cresceu britânica. Não podemos tirar-lhe o passaporte nem a história pessoal", escreve Zeina Awad.
Asma al-Assad, a primeira-dama síria, "pertence ao colectivo ocidental "nós" e, gostemos ou não, vai continuar a pertencer mesmo depois de a sua "missão civilizadora" ter falhado", continua Awad, correspondente da Al-Jazira em Washington, num texto publicado há dias no site da estação. "Por mais que nós nos tentemos afastar dela, ela permanece uma de nós."g
O pretexto para o texto de Awad é o mesmo deste artigo. Um abaixo-assinado acompanhado de um vídeo e promovido pelas mulheres dos embaixadores britânico e alemão na ONU interpela Asma, pedindo-lhe que use o seu poder para obrigar o marido, Bashar al-Assad, a parar de matar os seus cidadãos.
Até ontem 29 325 tinham assinado a petição (alojada no site da change.org. No início de Março, as Nações Unidas diziam que a repressão do regime de Damasco às manifestações pró-democráticas que começaram há 13 meses na Síria já tinha feito 9000 mortos, a maioria civis.
"Cara Asma, algumas mulheres preocupam-se com o estilo, e algumas mulheres em tomar conta dos seus. Algumas mulheres lutam pela sua imagem, e algumas mulheres lutam pela sua sobrevivência."
Começa assim o texto da petição, que é lido no vídeo - uma montagem de fotografias de Asma, glamourosa como sempre, intercaladas com imagens da revolução, mães com bebés nas mãos, meninas a fugir do Exército, filas de corpos envoltos em lençóis brancos, mulheres na linha da frente das manifestações.
As imagens são acompanhadas por uma narração alternada com a voz da própria primeira-dama. "Algumas mulheres esqueceram-se do que já pregaram pela paz", ouve-se. E logo depois, Asma por ela própria: "Todos merecemos o mesmo. Todos deveríamos poder viver em paz, com estabilidade e com a nossa dignidade". Logo a seguir, a pergunta: "O que te aconteceu, Asma?".
Isso ninguém sabe. Fica o que sabemos. "Centenas de crianças sírias já foram mortas ou ficaram feridas." Fica também o que gostaríamos de ver acontecer. "Defende a paz, Asma. Fala agora. Detém o teu marido." Nas últimas linhas afirma-se: "Ninguém quer saber da tua imagem. Queremos saber dos teus actos. Já".
Não deixa de ser irónico. "Nós" sempre quisemos saber da imagem de Asma. Gostávamos que não usasse lenço e que calçasse sapatos Christian Louboutin. Gostávamos que o seu sotaque britânico fosse perfeito. Gostávamos que fosse tão elegante. Recebemo-la em Paris e enchemos jornais sobre ela no Reino Unido.
Tudo mudou com a revolução síria e os seus milhares de mortos. Agora, já não queremos que Asma faça compras nas lojas de Paris ou Londres. Choca-nos descobrir que o faz: a meio de Março, quando o Guardian publicou dezenas de emails a que activistas da oposição síria conseguiram aceder pirateando as contas privadas de Bashar e de Asma, não queríamos acreditar que a primeira-dama continuasse a encomendar móveis de design.
Não, agora já não queremos compras dessas. O mês passado, a UE incluiu Asma no grupo de pessoas visadas por sanções, impedindo-a de viajar para os Estados membros (menos para o Reino Unido, onde nasceu). E já amanhã Bruxelas vai avançar com a décima quarta ronda de sanções contra o regime. Segundo explicou um diplomata citado pela AFP, as sanções estão prontas e visam limitar as importações de produtos de luxo. "Trata-se de fazer compreender ao casal Assad que os acontecimentos na Síria também têm consequências no seu estilo de vida pessoal", explicou o diplomata à agência de notícias francesa.
"Diana do Oriente"A revolução síria começou em Março de 2011. No mesmo mês, a Vogue norte-americana publicava um perfil de Asma onde a descrevia como "glamourosa, jovem e muito chique - a mais refrescante e magnética das primeiras-damas". O "magnetismo" vinha de trás: em Dezembro de 2008, a Elle distinguiu-a como "a primeira-dama mais bem vestida do mundo", à frente de Carla Bruni; pelo meio, a Paris-Match chamara-lhe "Diana do Oriente".
Asma era tudo isto, pelo menos para "nós", antes da revolução. Agora, tudo o que costumava ser-lhe apontado como qualidade regressou para a assombrar.
Filha de um reputado cardiologista e de uma diplomata, nasceu Asma al-Akhras em 1975 em Londres. A família é árabe sunita (como a maioria dos sírios) e originária de Homs (cidade que mais sofreu na revolta), parte da elite sunita aliada do regime alauita. Os Akhras tinham acesso ao palácio presidencial, onde o pai de Bashar, Hafez, estava desde 1971, e Asma conheceu Bashar, dez anos mais velho, nas férias de Verão.
Asma teve um percurso académico e um arranque de carreira irrepreensíveis. A uma escola anglicana seguiu-se uma licenciatura em Ciência Informática e um diploma em Literatura Francesa no King"s College. Depois, trabalhou para o Deutsche Bank como gestora de fundos até ser contratada pelo banco JP Morgan, em 1998, para se ocupar de fusões.
Seis anos antes, Bashar, licenciado em Medicina, chegara a Londres para se especializar em oftalmologia. A amizade começou a crescer quando este ainda era apenas filho de Hafez; Basel, o irmão mais velho, era o escolhido para suceder ao pai. Mas quando Basel morreu, em 1994, Asma e Bashar estavam envolvidos. E quando casaram, em Dezembro de 2000, Bashar já tinha sido eleito há seis meses com uns "fabulosos" 97% por votos (palavras da Vogue).
Para trás ficava Londres, mas não a modernidade. Em Damasco, o casal, que hoje tem três filhos (dois rapazes, com dez e oito anos, uma menina de sete), escolheu viver num triplex de luxo em vez de se mudar para o palácio presidencial.
Democracia caseiraA Vogue entrou no apartamento presidencial e, entre um candelabro feito de recortes de BD e muitas malas de design, também fotografou a grelha desenhada num quadro negro, com autocolantes para cada membro da família: "Temos tido problemas com a boa-educação, por isso fizemos esta grelha, com autocolantes para quando eles falam como devem e uma cruz quando não o fazem", explica Asma. Em frente ao nome da primeira-dama havia uma cruz. "Eu gritei", confessa.
Na mesma conversa explica que lá em casa "há uma democracia" - "Todos votamos no que queremos. Eles venceram, 3-2", conta, apontando para o candelabro, uma escolha dos filhos. "Eu não posso falar sobre dar poder aos jovens, encorajá-los a serem criativos e a assumirem responsabilidades se não for assim com os meus próprios filhos."
Enquanto primeira-dama, Asma dedicou-se ao desenvolvimento rural, mas também ao apoio a mulheres e crianças. Em 2005 fundou a Massar, ONG destinada a promover a actividade política entre os jovens.
Os analistas que seguem a Síria dão algum crédito a Asma por ter influenciado o marido nos primeiros anos da sua presidência, quando Bashar deu sinais de abertura. Fechou a temível penitenciária de Mezze, por exemplo, mas abriu outras e continuou a encerrar activistas e a não tolerar opositores.
Em Dezembro de 2010, poucos dias antes do tunisino Mohamed Bouazizi se ter imolado pelo fogo, desencadeando a primeira das revoltas árabes, os Sarkozy recebiam os Assad para um almoço no Eliseu. Tanto glamour deixou desconfortáveis alguns diplomatas. "Quando explicávamos a [Nicolas] Sarkozy que Assad era um tirano da pior espécie, ele dizia: "Bashar protege os cristãos, e com uma mulher tão moderna como a dele, não pode ser completamente mau"", confidenciou aos jornalistas o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner.
"É uma verdade universalmente aceite que um ditador que queira ser aceite pelo Ocidente deve procurar uma mulher charmosa e culta", escreveu a Reuters numa análise publicada na mesma altura.
Quando a Vogue entrevistava Asma em Damasco, já havia sírios a manifestar-se, mas poucos analistas acreditavam que o despertar árabe chegasse à Síria: Assad controlava a polícia política, o Exército, os serviços secretos. Os sírios acreditavam. Em Março, 15 miúdos de Deraa, no Sul, escreveram "o povo quer a queda do regime" nas paredes da escola. Foram presos e torturados e a cidade saiu à rua para pedir "justiça, direitos e a responsabilização" dos que tinham maltratado as crianças.
A contestação foi crescendo e a repressão piorando. E Asma saiu de cena.
"O que é que a esposa de Assad, uma mulher inteligente e educada criada no liberal Reino Unido, pensa das malvadezas perpetradas todos os dias pela Síria? Será que a princesa Diana da Síria se tornou na sua Maria Antonieta?", perguntou em Fevereiro o diário britânico The Times.
O jornal sentiu que tinha de perguntar - afinal, Asma sempre foi referida um pouco por todo o mundo com o prefixo "nascida no Reino Unido". Mais surpreendente, Asma decidiu que tinha de responder: "A agenda da primeira-dama continua focada nas organizações com que há muito está envolvida e em apoiar o Presidente nas suas necessidades. Por estes dias está igualmente envolvida em encorajar o diálogo. Ouve e conforta as vítimas da violência".
Segundo contou uma síria ao Independent, pelo menos em Outubro Asma ainda contactava com jovens, tendo convocado assistentes sociais e pedido para que lhes explicassem as dificuldades do seu trabalho. O que eles fizeram foi falar-lhe das manifestações, da tortura e das execuções. "Não reagiu, foi como se lhe estivéssemos a contar uma história do quotidiano sem grande interesse."
"Todas as revoluções têm a sua Lady Macbeth", diz um perito em Médio Oriente ouvido pelo jornal Guardian. Pelo menos para "nós". Os sírios nunca esperaram tanto de Asma como Sarkozy.