Os dois últimos livros de António Barahona, poeta cujo nome se foi tornando uma questão central da sua própria obra, relançando desde a origem a questão do “nome próprio e impróprio” - nas folhas de rosto, o nome português surge sempre aristocraticamente acrescentado, entre parênteses, de (da Honra da Fonseca) e, em itálico, do nome árabe Muhammad Abdur Rashid Ashraf -, trazem o autor para a linha da frente da poesia portuguesa actual. Editados por dois selos emblemáticos da cena poética recente (a Poesia Incompleta e a Averno), quer O Som do Sôpro, quer Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, dão de modos vários a ver a singular reivindicação de uma filiação da nova geração poética portuguesa - a que se agrupa em torno da Averno e da revista Criatura, e que em rigor é geração e meia - na obra, mas também no “perfil”, de Barahona. Editores responsáveis pela edição dos livros, autores emblemáticos (Manuel de Freitas, Diogo Vaz Pinto, Golgona Anghel, etc.), todos são por seu turno convocados, em dedicatórias dos livros, poemas dedicados, diálogos poéticos, a essa versão insaciável, e insaturável, de “memória” e “correspondência” (para usar títulos emblemáticos do autor), que em Barahona o livro é.
Esta fraternidade não significa, porém, nem que Barahona se tenha tornado consensual, nem que grande parte das suas posições sejam endossáveis pelos seus mais jovens parceiros. Por exemplo, quando Barahona escreve: “Desde o desaparecimento do frade, o Ocidente tornou-se numa fraude”; ou, a propósito do centenário da República: “Quanto às ministras: vão todas lavar escadas! / E as deputadas podem reciclar-se em putas!”; ou em todos aqueles momentos em que faz questão de se afirmar como o maior poeta fundamentalista islâmico português, é duvidoso que a nova geração poética o possa acompanhar. Aliás, para toda esta faceta da sua visão, apetece citar e assentir nesta autodefinição: “Sou monárquico, anarquista e muçulmano. Sou muito confuso”.
As coisas tornam-se mais interessantes quando constatamos que O Som do Sôpro abre com uma epígrafe de Pascoaes e que no livro seguinte podemos ler: “Fernando Pessoa é detestavelmente europeu e cosmopolita. Teixeira de Pascoaes é amavelmente universal e provinciano”. Trata-se, de novo, de recuperar a reacção histórica a Pessoa, quase sempre corporizada em Pascoaes, não por este ser tudo aquilo que Cesariny gostaria que fosse, mas antes por Pessoa ser tudo aquilo que Cesariny nele não apreciava, e mais ainda: uma espécie de ácido infindavelmente corrosivo de todas as ilusões pré-modernas do sujeito, da representação e da linguagem. Em Barahona a luta não passa pela falsificação de Pessoa, como no Virgem Negra de Cesariny, mas por um ambicioso projecto de refundação da linguagem poética naquilo a que chama “o sôpro” (note-se a reivindicação de uma ortografia motivada, no plano semântico, indiferente à própria ideia de normalização, como em Cesariny). Desse ponto de vista, o livro decisivo deste díptico assimétrico (o volume da Averno reúne de facto dois livros raspados do fundo da gaveta) é O Som do Sôpro, e sobretudo a sua secção I.
O poema Verificação oferece, nessa secção, uma cena primordial da linguagem: “Multiplicam-se as línguas a partir / do mesmo som central: o som do sôpro / primordial: a voz da água, donde / o fogo escorre pura essência dentro / de tudo a que se dá, por fora, num nome”. Dentro, pois, o sopro primordial, a água, o fogo, a essência; fora, o nome, qual campânula a que se acolhe a coisa nomeada. O poema seria “uma escultura de som, que, inacabada, dansa no sôpro. / O acabamento só a Deus pertence e não tem corpo”. A coisa-poema, “escultura de som”, reminiscência dessa fase em que “O homem antes de falar cantou / sílabas reveladas sem semântica / e só depois falou”, é a via imperfeita mas necessária de acesso ao Grande Silêncio do sopro primordial, isto é, ao encontro místico com a coisa-Deus. “A Grande-Guerra-Santa da prosódia”, treino em que o poeta persevera até à velhice “em demanda da melodia absoluta”, destina-se pois à aprendizagem da linguagem nua da “realidade feita música”. Num poema magnífico, Barahona chama a isto o enfrentamento com “o Arcanjo da Linguagem”, do qual o poeta sai “sempre derrotado”. Uma derrota que é porém uma vitória da liberdade que mais conta: “Depois de morto para o mundo, já se vive / livre, e em lugar nenhum: / apenas se reside só no som do Livro”. A solução seria assim de ordem teológica, o que implica um deslizar da poesia para a fé, ou da profissão (?) de poeta para a profissão de fé: “Dizem-me que poeta não é uma / profissão: mas eu digo que poeta / é, sim, a profissão maior, repleta / d''amor que não se esfuma // e que, em mim, se ajusta à profissão / de fé islâmica”. De modo concordante, a experiência do mundo, como a experiência da poesia, tenderia ao epifânico, a esses momentos em que se fica quieto por um instante - e em que esse instante, que pode ser o do entrechocar de xícaras de chá, coincide com o eterno: “O som saiu / do tempo e penetrou, sucinto, na eternidade”.
Num texto ambicioso, incluído no volume editado pela Averno, de título Conversão, Barahona reflecte sobre a analogia poética como analogia mística, recusando nesse ponto o “recuo” de André Breton e afirmando que “A analogia poética é religiosa no seu desenvolvimento imparável, porque, de facto, só a religião (e por excelência o Islame), no segredo gnóstico e esotérico, garante ao poeta a total liberdade de submissão voluntária”. Eis o que explica que muitos poemas destes livros - que são em rigor, sobretudo o último, vastas cornucópias de textos com uma ordenação mínima - sejam orações em verso ou que o drama da linguagem, como o da poesia, se resolva no silêncio de Deus: “O poeta não ama propriamente a Poesia, mas sim o que a Poesia lhe proporciona: a vitória sobre o mêdo do silêncio de Deus”. Resta saber se podemos descrever estas palavras como um verdadeiro elogio da poesia... Tal como poderíamos pôr em causa a tríade com que Barahona aprecia auto-descrever-se - poeta, santo e guerreiro -, já que nela, em boa leitura moderna, há duas entidades a mais. Mas uma vez que o tempo de Barahona é antes o do eterno, fiquemo-nos com uma outra analogia, mais produtiva: aquela que nas suas profissões de fé em verso é ainda, e sobretudo, profissão de fé no verso. Em torno dessa fé talvez possamos continuar a tomar um modesto e despragmatizado café.