O passado é inútil como um trapo". O verso é de Eugénio de Andrade e assoma à boca de António Zambujo como garantia de que a única ambição que lhe passa pela cabeça ao gravar um novo disco é a de responder àquilo que o momento pede. Não se demora muito a olhar para trás nem a assinalar num mapa os sítios por onde passou para os evitar desta vez. Mas esta inutilidade quer apenas dizer que o passado pode ser descurado (o que é diferente de apagado) na certeza de que não se vai embora. "Claro que eu canto hoje assim por ter ouvido com quatro anos os homens na taberna do Cintra diante da casa da minha avó, ido estudar clarinete para o Conservatório, ouvido uns discos de fado meio na clandestinidade durante a escola, encontrado o João Gilberto e ficado louco por música brasileira, e ouvido compulsivamente o Chet Baker, o Tom Waits e a Nina Simone. Mas o disco é, ainda assim, o registo deste momento".
Chamou-lhe Quinto, ao disco, não apenas por respeito ao seu lugar cronológico na discografia, mas também por ter sido parcialmente gravado em quinteto e ao vivo (mas sem público) - forma de capitalizar as cumplicidades e as raízes crescidas durante dois anos em palco entre voz, guitarra portuguesa, viola, cavaquinho, contrabaixo e clarinete. Uma prática mais costumeira no rock, não tanto no fado. Mas a cartografia da música de Zambujo, já o sabíamos, não termina quando a Mouraria desemboca no Martim Moniz - ainda que a convivência entre a cultura de rua portuguesa e o resto do mundo seja semelhante. Como escreve José Eduardo Agualusa para a sua voz, em Milagrário pessoal: "Dentro de ti ouço passar/ o queixume dum quissange/ Uma guitarra que tange/ uma cuíca que ri./ Escuto o alegre pulsar/ de Lisboa, Rio, Luanda". Mas não é apenas Agualusa a puxar África para dentro de Quinto. "As referências são as mesmas" de antes, garante Zambujo, "só que em determinada altura há alguma que salta mais do que as outras. Neste momento é a música africana, principalmente a de Cabo Verde, que está mais evidente na música que faço. Outras alturas haverá em que será a música brasileira novamente".
Para evitar chatices, Zambujo diz-se músico e não fadista. E a principal dessas chatices é precisamente a necessidade recorrente de exigir ao músico que aponte com precisão a que distância se encontra do fado - se está dentro dos seus limites, em cima de uma fronteira com a música brasileira, num qualquer outro ponto mas com vista privilegiada para a canção de Lisboa. Corresponder a esse pedido seria não só impossível como um atropelo à sua própria postura. Seria razão para parar. O certo é que, após sete anos, deixou de cantar no Senhor Vinho. Desde Dezembro, já não passa as noites a entreter (sobretudo) turistas. Talvez um dia volte, mas por agora prefere afastar-se de um ambiente que, regra geral - não aplicável ao Senhor Vinho ou à Casa de Linhares -, entende ser de uma "decadência horrível".
Esta coisa a que Zambujo chama "decadência" é, por outras palavras, "aquele chico-espertismo que temos e que deve deixar de existir de uma vez por todas". E aqui devem ler-se quatro ideias do cantor: a de que qualquer casa que se diga do fado deve ter uma referência artística "como o Jorge Fernando na Casa de Linhares, a Maria da Fé e a Aldina [Duarte] no Senhor Vinho, o Marco [Rodrigues] no Luso"; a de que olhar para estes espaços como um trabalho, e não como uma escola ou um laborário para experimentar ideias novas, "está errado"; a de que se paga "um exagero por um serviço que não é assim tão bom"; e a de que, como dizia Vinicius de Moraes em 1969 para a sua anfitriã Amália Rodrigues a propósito do povo português, há que "desengravatar" o fado. "As pessoas estão lá para mostrar a música, não para mostrar a roupa, os fatos com as gravatas, os vestidos compridos com o xaile", lembra, admitindo que já lhe chegou aos ouvidos haver quem comece a fazê-lo, concentrando-se na qualidade da música e dispensando a encenação. Percebe-se o arrepio de repulsa pela imagem tipificada de fadistas e guitarristas dentro da vitrina, como exemplares de um folclore português esquecido no tempo.
No computadorEm Agosto do ano passado, um dia depois de ter actuado no Festival dos Oceanos, em Lisboa, António Zambujo voltou ao local do "crime" para assistir a um concerto de Ana Moura. No final, cruzou-se com Pedro da Silva Martins, letrista e compositor dos Deolinda, com quem nunca tinha trocado sequer um "olá". Falaram, Pedro declarou a sua admiração por António e surpreendeu-o com uma revelação insólita: no seu computador tinha uma pasta chamada "António Zambujo", onde tinha guardado duas músicas (mais respectivas letras) feitas a pensar na voz deste fadista-para-lá-do-fado. Bastou depois abrir o email e juntar um anexo para Algo estranho acontece e Queria conhecer-te um dia cumprirem o destino para que tinham sido criadas.
Apesar da (e provavelmente devido à) distância de segurança guardada em relação ao fado, António Zambujo reaproxima-se também do registo tradicional em Quinto, trazendo para o disco Frederico Valério (homem dos fados orquestrais de Amália, que para ela compôs Fado do ciúme, o seu primeiro sucesso à escala nacional) e João Maria dos Anjos (uma das primeiras figuras da guitarra portuguesa em Lisboa, chamado inclusivamente para ensinar o rei D. Carlos). Não para marcar uma posição, uma vez que tudo o que faz, reforça, não tem um alcance estratégico. Pela mesma razão, a presença do Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de S. Bento surge porque "em vez de apresentar uma candidatura à Unesco" Zambujo quis "convidá-los a participar no disco, para que possam ser escutados por um número maior de pessoas". Não porque queira assumir a responsabilidade de renovar o cante alentejano (ou sequer do fado). Apenas porque há uma imagem que não o larga e explica a sua relação com a música. A daqueles homens na taberna em frente à casa da sua avó, que se juntavam e cantavam a uma voz as modas alentejanas arrancadas à terra.