Não foi concebido para consumo imediato. Não é um filme pastilha elástica (e muito menos um filme-sapatilha). “O Sapateiro”, melhor filme de animação português da última edição do Monstra (Prémio SPA/Vasco Granja) é antes um filme-sapateiro. “Procuramos perpetuar uma profissão que cada vez menos existe devido ao aumento da industrialização, do usa-e-deita-fora”, explicou ao P3 Vasco Sá, que dividiu as tarefas com David Doutel.
Fomos ao sapateiro — não fomos, mas é como se estivéssemos lá, no meio do couro e dos atacadores pendurados, das latinhas de graxa e de tachas, das solas e das colas escuras. É uma “intenção narrativa”, conta-nos David Doutel, 28 anos. O filme tem o ar “claustrofóbico e quente” que eles queriam. Tem a cor de um sapateiro, a memória e a animação tradicional como se tivesse sido cosido à mão numa oficina.
São “tons sépia, de Outono”, sugere Vasco Sá, 32 anos. “Remete para a plasticidade do carvão... os castanhos, as madeiras, as graxas...” Nesta oficina cruzam-se dois mundos com demasiados pontos em contacto para ser verdade. “O carvão é um elemento que com o tempo se desvanece. Pintamos no papel e o traço vai desaparecendo ao longo do tempo. Os sapateiros são cada vez menos. A memória colectiva em torno dos sapateiros começa a desaparecer”, completa o realizador, que já havia partilhado com David Doutel (e André English) o stop-motion “Obtuso” e que agora tem na forja o filme “Fuligem” (novamente uma parceria Vasco/David).
"O Sapateiro" é exactamente isso “Um filme sobre o trabalho de uma pessoa”, sublinha David — traço grosso de carvão. “Deixamos de ter a cara de quem faz as coisas e passamos a ter um logótipo. As coisas tornam-se corporativas e deixamos de ter as individualidades. O sapateiro representa bem isso, uma profissão muito individual, um homem sozinho, um trabalho que passa do pai para o filho...”
“O Sapateiro” foi desenhado a lápis e posteriormente pintado a carvão, um “registo rude, difícil de controlar” que permitiu explorar a parte mais plástica do carvão já sobre a animação e aproximar esta história ao mundo real de uma profissão em vias de extinção.
“Ultimamente só compõem carteiras ou colam solas. O fabrico do sapato em si e a beleza que isso traz acabou”, recorda Vasco Sá. “Lembro-me de usar um sapato e era um fascínio completo porque dava pontapés nas pedras... e hoje olho para eles e consigo recordar-me de algumas coisas que vivi com eles. Isso perdeu-se. O sapateiro era um local onde as pessoas se encontravam, onde se cumprimentavam e onde conversavam. Isso existe ainda aqui no Porto. Hoje em dia usamos uma sapatilha que dura um dia, deitamos fora e compramos outra porque está na moda”.
Animação à mão
“Tem a ver com a industrialização de quase tudo”, completa David. Também da animação? “’O Sapateiro’ anda à volta de sete mil e tal desenhos”, responde David Doutel, que só contabilizou a versão pintada dos mesmos.
A equipa, composta por cerca de 20 pessoas (em fases diferentes do processo), recebeu 100 mil euros por parte do Instituto de Cinema e Audiovisual e um pequeno fundo regional galego utilizado para a música e para a transcrição para 35 milímetros.
Vasco Sá e David Doutel, ambos licenciados em Som e Imagem pela Universidade Católica do Porto, juntaram forças para este projecto depois de terem trabalhado nos bastidores de “Os Olhos do Farol”, de Pedro Serrazina, e de “Viagem a Cabo verde”, de José Miguel Ribeiro. “O Sapateiro” foi produzido com a Sardinha em Lata, mas a dupla trabalha agora com a produtora Bando à Parte.