Roberto Bolaño no seu labirinto

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Roberto Bolaño escreveu ?que o futuro “nada de bom parecia trazer”; nove anos depois da sua morte, porém, a obra do escritor chileno continua a ter vida própria

É provável que o futuro das personagens do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) se assemelhe bastante ao nosso presente. Ele teve de inventá-lo, negro “como um balde de petróleo”, já que não o ia viver. Nós vivemo-lo - porque não o podemos já criar de outra maneira.

A frase que resume as perspectivas de um emigrante sul-americano clandestino em Barcelona, descrevendo-as “negras como um balde de petróleo”, pertence a Gaspar Heredia, uma das vozes narrativas de “A Pista de Gelo”, o primeiro romance de Bolaño, de 1993, que a Quetzal lança no próximo dia 9 em Portugal. Mas esse “futuro que nada de bom parecia trazer” está também presente em “Una Novelita Lumpen” (2002), o último livro que Bolaño publicou antes de morrer e que a realizadora chilena Alicia Scherson está a passar ao cinema. O filme, o primeiro rodado a partir de um livro do autor de “2666”, chamar-se-á precisamente “El Futuro” e inclui um diálogo entre Bianca e Tomás, os irmãos órfãos, que parece feito à medida do nosso presente:

- Quantas vezes comes num dia?

- Quatro.

- E quantas vezes dizes que estás disposto a comer no futuro?

- Uma.

Numa entrevista recente à revista argentina “Ñ”, Alicia Scherson (premiada em 2005 no Festival de Tribecca, em Nova Iorque, por “Play") resumiu a vida de Bianca e Tomás de um modo que também pode perfeitamente adequar-se ao ar do nosso tempo. Eles, os irmãos órfãos de “Una Novelita Lumpen”, “vivem num presente espantoso, de morte e pobreza, e por isso estão sempre a pensar no futuro”. E o resultado, acrescenta, é um romancezinho “pequeno e preciso, como uma azeitona”. Se a azeitona for preta, parece uma boa (e pessimista) metáfora do nosso futuro, no exacto reverso da luz ao fundo do túnel.

"El Futuro” foi rodado entre Santiago do Chile, Colónia e a Cinecittá de Roma e terá, como na história de Bolaño, uma narradora feminina, Bianca, e um quotidiano melancólico e bizarro, incerto. Os dois irmãos, órfãos recentes e virgens ambos, verão filmes pornográficos enquanto anoitece na casa com varanda para a Piazza Sonnino. Tomás sonhará com Tonya Waters, a actriz porno, e Bianca quererá morrer aos 36 anos, namorar com Brad Pitt, casar com Edward Norton e ser amante de Antonio Banderas.

Haverá Maciste (ou Giovanni Dellacroce, ou Franco Bruno), um antigo actor de filmes de romanos interpretado pelo holandês Rutger Hauer (30 anos depois dessa outra visão do futuro que era “Blade Runner”, o filme de Ridley Scott). E um par de culturistas quase gémeos, um líbio e um bolonhês, empenhados em descobrir onde o ex-actor cego - “enorme e branco como um frigorífico avariado” - esconde a quimérica fortuna que haverá de mudar o porvir de todos. Para tal, Bianca servi-lo-á sexualmente, untada com linimento e sem nunca se sentir uma puta: apenas uma delinquente que, durante o dia, trabalha num cabeleireiro, convencida de que ali estará o seu futuro.

O futuro outra vez. Mas Enrique Vila-Matas, o escritor catalão que conviveu com Bolaño durante os anos de Barcelona, não crê que “O Futuro” seja um título que possa abranger toda a obra do escritor chileno, como uma marca indelével. “Mas não tenho títulos alternativos, acho que estão bem aqueles que ele pôs. Sei que é impossível, mas gostaria de voltar a vê-lo. Teria muitas coisas para lhe perguntar”, diz Vila-Matas ao Ípsilon.

Uma teia de aranha

"Una Novelita Lumpen” é, em todo o caso, um Bolaño diferente daquele que os leitores portugueses se habituaram a apreciar: absolutamente nada metaliterário e despido de remissões para outras histórias de outros romances e dos outros contos (mesmo “Nocturno Chileno”, o livro que a Gótica publicou em Portugal em 2003, e que passou completamente despercebido, é narrado por um poeta e crítico literário à beira da morte). Em “Una Novelita Lumpen”, porém, nenhum dos personagens lê livros e até a biblioteca do sombrio casarão de Maciste está vazia. Mas foi nesse carácter folhetinesco que Alicia Scherson encontrou a nesga que lhe permitiu arriscar-se a ser a primeira a filmar uma ficção de Roberto Bolaño.

"Não acho que os livros de Bolaño sejam muito cinematográficos. Mas, quando li este romance breve, fiquei agarrada pela voz feminina que narra a história. Fiquei obcecada com a ideia de transformá-la em imagens”, contou a realizadora ao “El País” durante a rodagem em Roma.

"Una Novelita Lumpen”, resultado de uma encomenda da editora Mondadori, parece, assim, fora do labirinto, ou teia de aranha, tecido por Bolaño ao longo da maioria dos seus contos e romances, com personagens e histórias que se relacionam e se interpenetram.

"Estrela Distante”, que a Teorema editou em 2006, ainda antes da eclosão da Bolañomania, é, por exemplo, apresentado como um desenvolvimento do último capítulo de “A Literatura Nazi nas Américas”, que a Quetzal lançou em 2010. “Amuleto”, que a Quetzal deverá publicar em breve, conta a história de uma mulher, Auxilio Lacouture, que, presa numa casa de banho, ficciona ser a mãe da poesia mexicana - eventualmente essa Cesária Tinajero que é objecto da louca investigação de “Os Detectives Selvagens”. Dois dos personagens de “A Pista do Gelo”, Remo Morán e Gaspar Heredia, pertencem também a essa sonhadora comunidade poética da Cidade do México dos anos 1970, habitando a mesma costa catalã onde o Arturo Belano de “Os Detectives Selvagens” se refugia. E o romance que a Quetzal hoje lança é construído como uma sucessão de depoimentos, mimando também a estrutura da parte central de “Os Detectives Selvagens”.

Parece o fio de Ariadne e apetece segui-lo e investigá-lo até à saída do labirinto que Bolaño pacientemente teceu desde que concluiu que, “no planeta dos eunucos felizes e dos zumbis, a poesia não dava nada” ("A Pista de Gelo”, p. 113). “É impossível ler um só Bolaño”, concorda Francisco José Viegas, o actual secretário de Estado da Cultura, que, enquanto editor, foi responsável pela eclosão da Bolañomania. “Os livros de Bolaño (tal como os de Borges, ou, noutra medida, os de Cortázar) reenviam-se uns para os outros. Os personagens transitam de um livro para outro, as histórias nunca terminam num livro - são retomadas noutro. Quem leu ‘2666’ tem de ler ‘Os Dissabores do Verdadeiro Polícia’, por exemplo, que é o livro onde está a chave daquele. E quem leu ‘A Literatura Nazi nas Américas’ sabe que tem de ir a outros livros buscar informação e complemento”, explica Viegas.

Carlos Veiga Ferreira, o ex-editor da Teorema responsável pela tradução de “Estrela Distante” e de “Os Detectives Selvagens”, dispensa, porém, os jogos literários. “Os livros são perfeitamente independentes”, diz, confessando-se “completamente fascinado” pela obra do chileno e considerando que a palavra que melhor descreve Roberto Bolaño é “surpresa”. “E continua a surpreender”, acrescenta. Viegas prefere “relâmpago”. “Ou incêndio, não sei bem”, acrescenta.

Se a devoção por Bolaño os une, separa-nos, por exemplo, a crítica que Veiga Ferreira aponta à publicação póstuma de alguns livros que o autor não quis publicar em vida - no que se incluem “O Terceiro Reich” e o próprio “2666”, no qual Bolaño ainda trabalhava em 2003, quando morreu à espera de um transplante hepático, e que talvez não fosse um só livro, mas quatro, ou cinco. “É um mau costume de algumas viúvas. Não sei se ele publicaria alguns livros tal como estão”, comenta o ex-editor da Teorema.

Francisco José Viegas, que até começou por ler “Os Detectives Selvagens”, “Nocturno Chileno” e “A Pista de Gelo”, para além da colectânea de contos “Putas Asesinas”, acabou, porém, por se apaixonar por “2666”. “Passei a segunda metade do mês de Dezembro de 2008 a ler o ‘2666’ e quando cheguei a Janeiro decidi que tinha de o publicar na Quetzal e de lhe dar os cuidados que um livro tão genial exigia. ‘2666’ é um trovão permanente, reenvia-nos à história da literatura, aos seus labirintos”, conta. Se pudesse, mas não sabe como, era este o livro de Bolaño que Viegas gostaria de transformar em cinema.

Do planeta dos monstros

Alicia Scherson preferiu, porém, a última obra que o chileno publicou em vida. E “A Pista de Gelo” só agora chega às livrarias portuguesas, 19 anos depois da edição original, removido que parece estar, enfim, o “preconceito, muito absurdo”, que Francisco José Viegas considera existir “contra a literatura da América Latina da fase pós-Gabriel García Márquez”. “Bolaño é um dos pontos mais altos dessa literatura. A cidade de Santa Teresa [de ‘2666'] é o outro lado de Macondo, não tem nada a ver com esse mundo de generais e antepassados que levitam e vivem duas vezes. A América Latina de Bolaño é um mundo muito mais real e violento”, diz.

Sendo o primeiro romance de Roberto Bolaño ("Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce”, de 1984, foi escrito em parceria com Antoni García Porta), “A Pista de Gelo” pode ser visto como um primeiro esboço do labirinto literário em que o escritor chileno havia de se enredar. Já lá estão os poetas latino-americanos fracassados e expatriados, a narração polifónica, a tremenda inventividade e as longas, espantosas digressões, mas também o tom misterioso, próximo da literatura policial. E estão também as espantosas pernas de Núria Martí, a patinadora loira, a rapariga mais bonita de Z, com um rosto de pele perfeita de rapariga de Botticelli, em torno da qual se constrói a narrativa, e também uma surreal pista de gelo na piscina de um palácio abandonado.

Mas se “A Pista de Gelo” é um ensaio - e Enric Rosquelles ainda é capaz de dizer, num assomo de optimismo, que “o que está perdido está perdido (...) e temos que seguir em frente” -, “Una Novelita Lumpen” pode, apesar das aparências, ser uma espécie de resumo do apocalíptico, tenebroso século XX que vai sendo revelado pelos quatro críticos literários que, em “2666”, buscam as pistas do escritor alemão Benno von Archimbold. Talvez, no ponto a que chegamos, ou a que Bolaño chegou naquele ano de 2002, não haja já nenhum futuro que valha realmente a pena. E “Una Novelita Lumpen” seja precisamente o momento em que ouvimos Bolãno repetir uma frase inesquecível do narrador de “Estrela Distante": “Esta é a minha última transmissão do planeta dos monstros. Nunca mais voltarei a mergulhar no mar de merda da literatura. Daqui em diante escreverei os meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar”.

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