A morte a crédito de Olivier Rolin
Baku - últimos dias é um elegante e melancólico jogo no fio da navalha, onde a escrita arrisca a cada passo o equilíbrio precário. Mas é também o relato de um encontro onde a morte não quis comparecer, encontro há muito aprazado para a capital do Azerbaijão.
Na edição francesa de “Suite no Hotel Crystal” (ASA, 2006), o seu autor, Olivier Rolin, inscreveu na capa as datas e lugares do seu nascimento e da sua morte (Boulogne-Billancourt, 1947- Baku, 2009). Tornou-se assim numa espécie de morto a crédito com data já aprazada. Chegado esse ano, sentiu que deveria ir a Baku averiguar da verdade da ficção. “Baku - últimos dias” (Sextante editora) é a crónica dessa “morte anunciada”, mas é sobretudo um brilhante jogo com o leitor, onde se cruzam literatura e realidade, apontamentos de viagem, e pequenas histórias. Sobre esse jogo iniciado cinco anos antes, e sobre os seus livros, Rolin falou com o Ípsilon no pátio do Palácio Belmonte, onde decorriam os encontros da iniciativa “A figura de Lisboa na literatura - olhares cruzados de escritores franceses”.
Em “Baku - últimos dias” a morte é tratada com ironia. Como é que se relaciona com a ideia de morte, a ideia da sua morte, que você convocou em “Suite do Hotel Crystal” e com a qual continuou o jogo neste livro?
Sobre isso eu penso como Montaigne, como sendo qualquer coisa de normal, de natural. Não é o medo, que não tenho, o que me faz pensar nela, o que me interessa na ideia de morte é o desaparecimento. Por isso em Baku eu estive sozinho, sem relações sociais, como um “não-ser”. Aquilo sobre o qual eu quis reflectir foi “o que é, verdadeiramente, morrer”. Fazer uma reflexão sobre o desaparecimento, o apagamento, o esvaecimento.
E para isso inventou um jogo...
O ponto de partida foi um jogo, um jogo que não tem nada de sinistro, de mórbido. Eu não pensava que ia morrer no Azerbaijão [risos] ... Esperava que não. O que me interessava verdadeiramente era pôr-me numa situação de “desaparecimento”. Não conhecia ninguém em Baku, não falava a língua. Queria escrever um livro que fosse como o pensamento de alguém que está completamente só, o que pensa sobre os livros, sobre a infância, sobre o que vê à sua volta. Queria transcrever para o papel o movimento do pensamento, da imaginação, da memória, escrever na forma mais livre que eu conseguia imaginar. Escrever quase tudo o que me passava pela cabeça. E no fim ainda juntei as fotos, que não foram tiradas para as publicar mas para me ajudarem nas notas que tomava. É um livro que vai crescendo em várias direcções, como o pensamento de um homem que está só.
As fotografias fazem parte desse jogo entre a ficção e a realidade? Servem de instrumento para tornar a ficção mais real?
As fotografias não são boas, estão cheias de sombras. Elas não demonstram nada, e há também no livro outras imagens, coisas muito antigas, que não são fotografias. Não têm qualquer função de provar a realidade. Juntei-as apenas como lembrança. Aliás, foi o editor que teve a ideia de as publicar...
Fazem lembrar os livros de Sebald...
Sim, sobretudo “Os Anéis de Saturno”. Eu li-o há muitos anos. Esse livro conta um passeio a pé por uma região, mas é também um passeio pelos livros, pela memória. E depois há aquelas pequenas fotografias que não provam nada, que não têm sequer um efeito de ilustração. Gosto muito dos livros que brincam com o leitor, como as obras do Perec, dos livros onde não se percebe bem onde começa a ficção e acaba a realidade, onde uma segunda ficção se sobrepõe a uma primeira. Ao contrário de Borges - com as devidas distâncias - gosto dos espelhos. Gosto de tudo o que engana - não na vida, claro, mas na ficção - gosto da ilusão literária.
O livro foi escrito, ou começado a escrever, em Baku? Parece muito minucioso...
Não, não. Durante o tempo que lá estive tomei muitas notas, muitas mesmo. Tinha pelo menos três cadernos cheios de apontamentos, coisas desordenadas, notas tomadas em todas as ocasiões e lugares, mesmo na rua. E só quando voltei a França, a Paris, é que o comecei a escrever. Mas o tomar notas não é fácil, requer uma certa prática na escolha do que é essencial, porque a memória não é capaz de guardar tudo. Os detalhes, a imagem da cabeça de um camelo que encontrei, as sombras dos edifícios, tudo é anotado. Depois há que encontrar as palavras certas para pôr tudo isso outra vez no papel, e esforçarmo-nos para construir alguma coisa com elas.
Muitos dos seus romances têm um carácter fragmentário. “A Invenção do Mundo” [ASA, 1998] e agora “Baku - últimos dias” são um caso paradigmático, construídos com bocados sem uma ordem aparente, ou pelo menos pouco evidente. Esse tipo de arquitectura romanesca é trabalhado ou tem antes a ver com uma vontade de “desconstrução” da forma ortodoxa do romance?
A forma normal, ortodoxa como diz, é artificial. O pensamento, a vida, não são contínuos, não são perfeitos nem bem construídos, têm buracos. Nós passamos depressa da alegria à melancolia. Sentimos várias coisas ao mesmo tempo, pensamos noutras, olhamos as laranjas nas árvores enquanto falamos sobre literatura, ou enquanto damos entrevistas. A vida das sensações é completamente descontínua. A continuidade é artificial. Gosto da forma fragmentada apenas porque é a mais verdadeira. E depois porque é necessário muita energia para criar a continuidade...
Mas as histórias nos seus livros sucedem-se umas atrás das outras, como os antigos contadores de histórias...
Tem razão. “As Mil e Uma Noites” são o meu modelo, de uma maneira modesta, e isso é evidente no meu romance “A Invenção do Mundo”, fazem parte das minhas referências culturais. Gosto muito da forma de uma história se encadear noutra, de as histórias fluírem sem empecilhos, mesmo quando uma não está acabada e só será retomada mais adiante. É a minha modesta maneira de organizar o caos.
A viagem parece funcionar sempre como o motor da sua escrita. É-lhe indispensável?
Para mim, sim. Talvez porque eu sou um pouco caótico, disperso, em vários sentidos. A viagem não é necessária a todos os escritores. Proust, por exemplo, nunca se afastou muito do lugar onde vivia... foi apenas a Veneza, e é um dos maiores escritores do século XX. Mas para mim a deambulação é importante porque a minha curiosidade me leva a prestar atenção a tudo, e preciso do que me rodeia, especialmente quando estou sozinho. Mas também posso escrever se estiver fechado numa prisão... e talvez o faça melhor [risos].
O lado testamentário de “Baku - últimos dias” é um “ajuste de contas” com as suas obras anteriores?
Como me coloquei, de maneira ficcionada, na posição de alguém que vai morrer, pude permitir-me esse “ajuste de contas”... não é um testamento, mas ficticiamente é como se fosse um testamento. E isso permitiu-me falar dos outros meus livros, pareceu-me necessário fazê-lo. Mas com muita ironia, como faço sempre.
Qual é a importância da ironia nos seus livros??Espero não escrever nada que não seja irónico, que eu não me veja no que escrevo sem ser de maneira irónica. Quando eu era muito novo não tinha ironia, creio, o que fazia de mim um homem muito dramático, e também muito patético. A literatura ensinou-me a importância de ser irónico e isso transformou-se numa das coisas mais importantes da minha vida. É sobretudo a ironia sobre mim mesmo a que me interessa, sobre os outros, por vezes pode ser desagradável. Pode parecer um paradoxo, mas a ironia em literatura torna-a mais séria, faz-nos acreditar mais nela. E isso é o que me interessa.