Entre o momento em que primeiro se falou de “O Artista” (há oito meses, quando estreou a concurso em Cannes) e a sua estreia comercial entre nós, o filme de Michel Hazanavicius tornou-se num fenómeno, confirmado pela sua liderança nas nomeações para os Óscares (que já se adivinhavam, é verdade). Como de costume, os prémios (que o filme começou a coleccionar logo em Cannes) são uma cortina de fumo que tapa a verdadeira importância de “O Artista”: a de provar, numa altura em que toda a gente fala de 3D, efeitos visuais, “motion capture” e outras tecnologias sofisticadas, que a linguagem visual do cinema não precisa de nada disso. Bastam dois actores a representar face a uma câmara. E se outra razão não houvesse para o recomendar, esta memória de um cinema primordial, mais simples, menos frenético, apoiado na história e nos actores, seria suficiente.
Há, felizmente, muito mais, porque “O Artista” é o filme pós-moderno por excelência. É um filme mudo a preto e branco sobre a Hollywood da passagem do mudo para o sonoro, regurgitando sem problemas duas das mais célebres narrativas míticas de Hollywood. Uma, a passagem de testemunho entre duas gerações de actores, como contada em “Nasce uma Estrela” (1937), de William Wellman, e nas suas “remakes” posteriores com Judy Garland (1954) e Barbra Streisand (1976). Outra, a das carreiras criadas e destruídas pelas mudanças de paradigma, conforme explorado no lendário “Serenata à Chuva” (1952) de Stanley Donen e Gene Kelly, que se passava precisamente na passagem do mudo para o sonoro.
Hazanavicius combina ambos na história de um galã do mudo cuja carreira é ameaçada pela chegada do som e pela popularidade da jovem actriz que ajudou a descobrir. E fá-lo homenageando a ideia de Hollywood como “fábrica de sonhos” ao mesmo tempo que a reutilização de narrativas com provas dadas (algo em que o sistema americano se tornou perito) o inscreve nessa mesma linhagem. Ironia suprema: fá-lo à distância, pois esta é uma produção inteiramente francesa, que consegue ser mais Hollywood que Hollywood ela própria, que se refugia numa projecção nostálgica de um passado glorioso que talvez nunca tenha passado da ficção, sucumbindo à ilusão que ela próprio cria.
Mas a verdade é que as lições de “O Artista” estão noutro lado. Primeiro, no seu apelo sincero a não olhar para o passado do cinema como algo que ficou apenas lá atrás, mas como alguém que continua connosco, presente, actual. Depois, na convicção de que um filme só resulta genuinamente quando a emoção passa do écrã para a sala, quando há uma sintonia absoluta entre quem o faz e quem o vê. Sem falsas nostalgias, isso acontecia nos tempos do cinema clássico de um modo que já não pode existir hoje, porque os tempos mudaram. E é isso que “O Artista” quer, de modo arrebatado, que volte a acontecer, apesar dos tempos terem mudado. Por trás da fachada do filme mudo a preto e branco, esconde-se uma carta de amor ao cinema que recorda uma coisa de que muitas vezes nos esquecemos: a emoção precisa apenas de dois actores e uma câmara. É isso que, na maior parte do tempo, “O Artista” é. E não precisa de mais nada; o resto é fachada.