Quando Sérgio Praia se senta à janela de um café do Chiado, cabelo curto e barba rala, há um momento fugaz em que é impossível não reconhecermos no seu olhar, no seu movimento, a figura que apenas conhecemos das fotografias ou dos videos de época. Tal como, nos videos que o realizador João Maia colocou na internet há quase dois anos, vemos Sérgio Praia a passear, maquilhado e vestido de António, pela Baixa, e ficamos com a sensação que um fantasma acaba de passar por ali.
É nesse momento fugaz que fica explicado porque é que João Maia persegue o seu projecto sobre António Variações há quase dez anos, e porque é que o quer fazer com o actor Sérgio Praia, que aguarda há quase três que tudo se desbloqueie. Parece inacreditável que, nos 28 anos que decorreram desde que o criador de "É p'ra Amanhã..." e "...O Corpo é que Paga" faleceu tragicamente, ainda ninguém se tenha abalançado a fazer um filme da sua história (apesar dos discos retrospectivos, das biografias em livro ou do documentário televisivo).
Variações esteve sob contrato discográfico por cinco anos durante os quais não se percebeu muito bem "o que fazer com este artista" antes de finalmente, em 1982, chegar ao disco. Ironicamente (ou talvez não), João Maia transporta o projecto deste filme há dez anos. "Um tipo que é barbeiro, que tem gente a dizer-lhe que não sabe cantar e que acaba por gravar com o Ricardo Camacho, os GNR, os Heróis do Mar, o Moz Carrapa dos Salada de Frutas... Um tipo com mais de 35 anos a começar uma carreira numa cena que era ‘para miúdos'..."
Variações perseguiu o sonho. À sua imagem, também Maia. "Concorri a um subsídio do ICA, em 2003 - nesse Verão apresentei o projecto. Na altura fiz a pesquisa com a Catarina Portas. Devo ter falado com seis ou sete dos irmãos entre 2004 e 2005, estive um ano só a trabalhar no guião. Acabei o guião em Março de 2006 e assinei contrato em Maio desse ano."
Seis anos depois, "Variações" ainda não entrou em produção.
A voz é que paga"Fui para o casting reticente. Não sabia muito bem ao para que ia e poderia não ter muito a ver comigo, porque teria de cantar."
Sérgio Praia confirma assim que cantar é das coisas mais complicadas para um actor.
João Maia explica que a sua visão da história de Variações se passa "a 80 por cento antes do sucesso, numa altura em que ainda não há gravações. O Variações não era um cantor fenomenal, mas tinha qualquer coisa... Queria que passasse aquela ideia de que ele adorava cantar, mal ou bem, e por isso era essencial que fosse o actor a cantar. Não se pode fazer passar isso com playback."
Praia confessa: "Ao princípio, cantar era uma confusão muito grande para a minha cabeça, e era importante para mim afinar. Mas comecei a perceber que não sou nem nunca serei o António, tinha de ir por outro lado, dar alguma humanidade às palavras que estou a dizer." Foi o primeiro actor com quem Maia fez audições, e a evidência impôs-se de tal modo que o realizador faria, em 2010, uma série de ensaios de imagem que foram entretanto disponibilizados na Internet, com reacções entusiásticas. "O Sérgio cantava as canções como se fossem dele. E ele é perfeito para o projecto. Também vem de uma aldeiazinha pequena, passou por uma série de coisas, tem uma parecença física, a voz parecida, o olhar muito parecido..."
O actor, natural do Furadouro, admite ter em comum com o cantor "essa coisa de sair do sítio onde se nasce para se ser aquilo que não se pode ser lá. Estou em Lisboa desde 1998, tenho feito o meu trabalho, mas ainda sinto essa chama acesa." E não esconde os nervos que o projecto lhe cria. "O António é uma figura mítica, portanto as pessoas têm uma ideia na cabeça. Mas o que me assusta mais é a pouca experiência que tenho em cinema." Actualmente no elenco da novela da SIC "Rosa Fogo", é no teatro que Praia tem feito a sua carreira - para dar um exemplo recente, contracenou com Miguel Guilherme na produção do Teatro Aberto de "O Senhor Puntila e o Seu Criado Matti", de Brecht - e "Variações" será o seu primeiro filme.
Nisso, aliás, tem muito em comum com João Maia, cuja curta "O Prego" (1997) foi muito bem recebida, mas que desde então ainda não passou à longa. A sua carreira tem sido feita em televisão (onde dirigiu, por exemplo, a "cause célèbre" que foi o "Programa da Maria") e na publicidade. E desde que começou a trabalhar em "Variações" em 2001 que nem sequer se quer abalançar a outro projecto. "Pensei várias vezes em pegar noutro guião, mas tive medo de não pegar mais neste se começasse outro filme." Isso implicou lançar-se para a frente e colocar uma previdência cautelar para garantir que fazia o filme que queria fazer. "Interessa-me fazer bem, não me interessa fazer de qualquer maneira." Sérgio Praia: "O Maia quer fazer um filme minimamente verdadeiro e coerente sobre, e não quis vender-se a ideias que achava menos boas. O facto de ele ter aguentado esta guerra fez-me pensar que eu estava no projecto certo."
OptimismoEm 2006, Maia assinou contrato com o produtor Alexandre Cebrian Valente, que conhecia de trabalhos anteriores em televisão. Valente acabara de estabelecer a Utopia Filmes e saía do esmagador êxito comercial de "O Crime do Padre Amaro". O realizador continuou a trabalhar no guião e no Verão de 2008 recebe luz verde para a produção. Foi aí que as coisas começaram a descarrilar, com a produção a entregar o guião a um argumentista australiano para revisão e a propor um segundo contrato: "Dizia basicamente que eu podia ser despedido do projecto a qualquer altura. Não assinei. Ele mandou uma carta a dizer que o contrato ficava sem efeito, ele faria o filme dele e eu o meu."
Consciente que qualquer projecto lançado por Valente teria de ser sempre baseado no guião que escrevera, Maia iniciou procedimentos legais no início de 2009, lançando o projecto para um limbo do qual só saiu em Dezembro último, após onze meses de julgamento, com a confirmação da previdência cautelar colocada pelo cineasta. A "ameaça" da Utopia de avançar com um projecto separado nunca se concretizou; a produtora encerrou actividades após dois outros projectos conturbados ("Corrupção", do qual João Botelho retirou o nome, e "Second Life", escrito e co-dirigido pelo próprio produtor). Mas Maia não pessoaliza a questão. "Nunca tive sequer uma pega com ele. Acontece apenas que o filme que estava agora em cima da mesa não era o filme que eu tinha em mente, estava a ir por um caminho que não me agradava."
Resolvida a questão legal (durante a qual Maia manteve o projecto vivo com os ensaios que podem ser vistos no site temporário do projecto em http://variacoesfilm.wordpress.com), resta agora encontrar um produtor disposto a assumir o projecto para uma rodagem no Inverno de 2012/2013, com as negociações a decorrer durante Janeiro. A conjuntura está longe de ser fácil, como o cineasta admite. "Se fosse pela conjuntura, estaria pessimista. Mas este projecto tem tantas possibilidades que tenho que estar optimista."
Sérgio Praia, esse, não tem dúvidas que o filme vai de ser feito. "Já passei por muitas fases, primeiro que era o escolhido, depois afinal já não era, mas houve uma coisa que sempre me fez acreditar. Saía de casa, ia ao café, e a primeira coisa que ouvia no café, ou num táxi, era o Variações a cantar. Não sou nada místico, mas quando estas coisas acontecem constantemente, por mais que não queira, parece um sinal..."