Como o comum dos portugueses explodi de incredulidade e depois de fúria após as já famosas declarações de Cavaco Silva. Mas, agora já um pouco distanciado, não deixo de procurar no sucedido algo de mais profundo do que a saudável e epidérmica reacção primeira.
Reparem na ênfase colocada no aforro: ele e a mulher, ano após ano, depois do casamento, apesar dos magros salários, fizeram crescer as poupanças. “Poupanças”, o mítico cofre-forte do tesouro do português remediado e desconfiado do futuro e dos outros em geral. Noutros tempos, o casal teria cosido o dinheiro junto ao colchão porque não estavam ainda criados os mecanismos de confiança no sistema financeiro.
A confiança manifestava-se face a face, junto dos próximos, dos que partilhavam um território contíguo assente no controle quase ecológico de todos por todos nas também já míticas comunidades (onde se praticavam, de resto, actos horríveis e violentos, só que surdamente, mansamente…). O imaginário de Cavaco Silva remete, pois, para as virtudes do salazarismo: a auto-suficiência rural, bucólica, honesta e benfazeja, o não desejar acima das suas possibilidades, a honradez de quem organiza o seu sustento sem necessitar de se endividar. Salazar desconfiava tanto do comunismo como do capitalismo, e só tolerava este último em versões domésticas altamente condicionadas pelo Estado, opondo-se à emergência do individualismo secularizado do pós 2ª Guerra Mundial.
Cavaco Silva revela-se um híbrido em termos de macro-influências socializadoras: se, por um lado, bebe no sonho da “alegre casinha portuguesa”, “modesta, asseadinha mas minha”, por outro, mergulha já no frenesim neo-liberal do consumismo hedonista. Não lhe basta uma casa, tem várias, sendo a mais conhecida uma sofisticada mansão no aldeamento onde pululam os senhores do BPN. Além do mais, não se limita a guardar dinheiro no banco, esperando o magro juro: move influências, compra acções (novamente do BPN) a preço do amigo Oliveira e Costa e tem um plano de investimentos com alguma estratégia, fruto, certamente, das aprendizagens académicas e outras.
Cavaco Silva oscila entre o cosmopolitismo de um homem do mundo e as raízes de Boliqueime, entre o capital social adquirido ao longo de uma trajectória de mobilidade social ascendente e o conforto dos “velhos valores” da sua juventude. De certa forma, a melhor maneira de resolver tensões identitárias é, precisamente, produzir discursos como este. A palavra é, às vezes, uma solução mágica para impasses profundos. Hamlet dixit: ser ou não ser Cavaco.
Cavaco Silva produziu filhos como Passos Coelho ou Miguel Relvas; filhos pós-modernos, que já nada devem ao imaginário rural e que estão de alma e coração rendidos ao erotismo virtual do capital "vodu". Mas o velho Cavaco, ciente do seu trajecto, lembra o tempo do vinho a tostões, levanta um esgar ao capitalismo de casino e sonha, sonha, sonha - com um Portugal poupadinho como só ele e a Maria.