Há muitas coisas que, nos idos de 1970, não se imaginaria Clint Eastwood filmar como realizador - Pierre Rissient, “attaché de press” das primeiras realizações do actor, resumiu assim: nos idos de 1970 a aposta era Jack Nicholson, ninguém imaginava Eastwood a realizar. Não se podia jurar, por exemplo, no tempo de Dirty Harry, esse macho e esse facho, que Clint faria um filme sobre uma relação de amor entre dois homens, em que um dos membros do “casal” seria J. Edgar Hoover, o homem do FBI durante 40 anos (nomeado director do Bureau of Investigation, antecessor do FBI, em 1924, esteve na fundação do FBI em 1935, que dirigiu até à morte, em 1972).
Mas olhando melhor vê-se que passam coisas de Dirty Harry para o Hoover de “J. Edgar”. A violência que o medo instalou neles, por exemplo, que fez deles figuras anacrónicas, homens do seu tempo a lutar contra o tempo que já não compreendem e que já não os compreende. Tal como Dirty Harry vai sendo exposto, ao longo dos filmes da série, aos ataques do feminismo, das sexualidades, da contra-cultura, também J. Edgar passa de fundador da polícia moderna a efabulador paranóico da realidade.
Eastwood especializou-se em expor dinossauros assim, tirando-os do “habitat” e sujeitando-os aos efeitos do tempo. Fez isso, inclusive, com a sua "persona”, gesto de contonos delirantemente masoquistas (é bom lembrar aquela foto de Annie Leibowitz com Clint num cenário de “western” enroscado a um poste, abraçado por cordas, com prazer nos lábios por se meter em trabalhos.) Ele próprio, segundo a biografia de Richard Schickel, sempre se sentiu assim: acabado de chegar a Hollywood, no final dos 50s, já era um corpo que nada tinha a ver com os modelos que começavam a dominar, e os “seus” cineastas também eram os que por esses anos chegavam ao fim de carreira.
“J. Edgar” é um filme que estabelece cumplicidade com um “vilão” - ética e sabedoria, digamos, clássicas: entender as razões de todos e perceber que um “mau da fita” é melhor personagem. É um filme em que, tal como em “As Bandeiras dos Nossos Pais” (2006) ou em “A Troca” (2008), Eastwood inventaria a sua memória, confrontando-se com episódios do seu tempo de adolescência (a história dos homens que hastearam a bandeira americana em Iwo Jima) e da infância (o rapto e assassinato do bebé de Charles Lindbergh é um “fantasma” em “A Troca” e reaparece em “J. Edgar”, o “biopic” do homem que na memória de Clint começou por ser figura heróica de “comics”.)
É uma navegação pela escuridão - nos filmes de Eastwood, e com a cumplicidade de directores de fotografia como Tom Stern, as cores são experimentadas a negro - através da psique americana: Clint, historiador, filmando o passado e a obsessão de Hoover com o inimigo “within”, para falar de hoje, da paranóia da segurança e do fascismo à espreita; Clint metendo-se com as sombras do cinema e com a hipnose dentro das salas, mostrando como “Inimigo Público nº 1”, em 1931, e “G Men”, em 1935, protótipos de “Warner films”, construíram um imaginário de “glamourização” do “outlaw”, primeiro, e, como reacção, de apologia da ordem heróica do FBI. “J. Edgar” pode ser, então, a versão de hoje de um “Warner film”, até porque é no “backlot” da Warner, no que restou dos estúdios clássicos, que Clint tem o escritório da sua Malpaso.
Mas falando precisamente do que restou, do andamento de fixação retórica que está no cinema de Eastwood depois do soberbo “Gran Torino” (2008), “J. Edgar” é a reiteração do que já terminou. Nos seus “flashbacks”, na forma como as personagens estão esmagadas por máscaras - as próteses de envelhecimento que DiCaprio e os outros vestem -, é um exemplar carnavalesco, só a espaços domado pelo pudor (a intimidade entre Hoover e o amigo e secretário Clyde Tolson), de um artesanato narrativo e figurativo que já teve os seus dias. Como uma múmia: exposto ao ar, “J. Edgar” desfaz-se. Admire-se a coerência, o individualismo, a solidão - Eastwood cumprindo o seu destino como dinossauro. O odor é de putrefacção.