Tiago Pereira parece ter uma energia inesgotável. No trabalho que faz e na forma como fala dele. Tiago Pereira, o realizador que tomou em mãos procurar o país musical que o país esconde, o videasta que anda de norte a sul em busca da tradição, sem ambições de etnografia. Autor de "Tradição Oral Contemporânea" ou "Significado - O que seria a Música Portuguesa se Gostasse Dela Própria", vem traçando infatigavelmente um mapa de sons, de vozes, dizeres, instrumentos e canções. Tudo para mostrar que há mais que o que a vista alcança no altar da visibilidade mediática ou "internética". Para mostrar que nada é fixo e imutável. Muito menos a tradição. Principalmente a tradição. "Se me falam em fusões ou roupagens fico mal disposto", confessa. "A partir do momento em que estás a transmitir, já estás a fundir. E isto aplica-se a tudo. À música tradicional, à pop e a todas as outras". No último ano, esta ideia, basilar ao seu trabalho, ganhou forma de mosaico. Tiago e a realizadora Joana Barra Vaz chamaram-lhe "A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria". E o que é isso? Sucintamente, é um canal, alojado em http://amusicaportuguesaagostardelapropria.org/, onde se encontram centenas de vídeos de música. Navega-se demoradamente e o simplismo ganha outra densidade: é, afinal, um mosaico imenso e caótico, que nos devolve uma imagem abrangente - pop, jazz, rock, tradicional -, e não hierarquizada - isto é fundamental, como veremos de seguida -, do país musical, hoje.
Entretanto, a ideia por trás do canal, a de que não existem graus de separação entre o tradicional que emana de conhecimentos ancestrais e o pop assimilado por década de música popular urbana, ganha fôlego num novo filme, "Vamos tocar todos juntos para ouvirmos melhor", que Tiago Pereira realizou para a Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012. Estreia domingo, às 21h30, no Centro de Artes e Espectáculos São Mamede. Mas adiantamo-nos. Antes do filme, existia e existe o tal mosaico imenso e caótico que começou pelos fundadores Tiago Pereira e Joana Barra Vaz, que entretanto se afastou do projecto, e que engloba hoje o trabalho de vários outros realizadores e realizadoras.
Em "A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria" estão os Mão Morta ou os Long Way To Alaska, os Mata Ratos ou Manuel Fúria, estão violas campaniças ou gaitas de foles, cantadeiras ou conjuntos de bombos, as Pega Monstro ou o Grupo dos Borracheiros da Ilha da Madeira. Todos em registo informal e intimista, filmados em locais pouco habituais: em ambiente rural de campos e penedos, entre fachadas de ruínas urbanas, em parques ou caminhos perdidos. Esta noite, o canal que já ascendeu oficialmente a associação celebra o seu primeiro ano de existência. No Musicbox, estarão Manuel Fúria, que é o "protagonista" sem voz mas de guitarra em punho de "Vamos Tocar Todos Juntos...", os Velha Gaiteira e Elisa Rodrigues. Ou seja, o "pop roque" de Fúria, o jazz de Elisa e as gaitas e bombos da Gaiteira. A abrangência do cartaz serve como carta de apresentação de um canal que, como habitual no frenético Tiago Pereira, nasceu de um impulso.
Enquanto trabalhava com Joana Barra Vaz na filmagem de um concertos dos PAUS, discutiu a possibilidade de fazer uma biblioteca de vídeos portuguesa. Pouco depois, a 15 de Janeiro de 2011, leu na imprensa um artigo sobre músicos que resgatavam o português como componente essencial da sua música. "Nesse dia decido chamar-lhe ‘A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria'". No dia seguinte, estava a filmar Márcia e Jorge Cruz. E já tinha decidido que a produção seria torrencial. Cinco vídeos por semana. "Nem tinha noção de onde me ia meter e da loucura que era. Mas começas e vais fazendo". E ele e os demais foram fazendo.
Foram filmando: músicos em plano fixo, som ambiente a transbordar para a gravação, "para se sentir o tempo e o espaço", e o microfone sempre presente, qual espectador privilegiado. "É um pouco como ter um teatro, um espaço muito bonito de oferta ao público", reflecte. "Cria uma relação de intimidade muito ‘fora', como se estivesses a fazer um concerto muito íntimo para o realizador e, claro, para as pessoas que vêm na internet."
Este não é, acentua, um canal de Tiago Pereira, apesar de, percentualmente, a sua assinatura ser presença mais regular nos vídeos ali alojados. Assim foi desde o início. Enquanto partiu país fora para filmar aquilo que seria o filme "Sinfonia Imaterial", continuava uma equipa a trabalhar em Lisboa. Esta abertura, que hoje se estende de norte a sul, é importante. Fosse apenas Tiago a filmar e, claro, veríamos apenas o que lhe interessa, "as velhinhas" e aqueles que lhe estão "musicalmente próximos". Não era essa a intenção fundadora. Tiago Pereira lançou-se nesta epopeia por sentir que "não havia [em Portugal] um sítio que se abrisse e, de repente, mostrasse um músico de intervenção, a seguir um cantautor, depois um jazz e um hip hop, depois deles uma velhinha e a seguir um grupo completamente hardcore como os Holocausto Canibal". Confessa que o canal devia chamar-se "A Música Portuguesa a Conhecer-se a Ela Própria". Porque, um ano depois de ter filmado o primeiro vídeo, Tiago Pereira tem uma certeza: "vivemos num país muito pequeno, mas de uma ignorância musical gigante. O país desconhece o país e isso é uma coisa óbvia".
Isto interessa-me, vou filmar "A Música Portuguesa...", não tem filtros. Neste momento, entre quem passou e quem ainda se mantém ligado ao projecto, contam-se 18 realizadores e realizadoras, entre nomes com percurso profissional e aqueles que, como estagiários, dão aqui os primeiros passos (a equipa é actualmente formada por Tiago Pereira, Ana Cláudia Silva, Marina Guerreiro, Marco Pereira, Andrea Rocha, Soraia Simões, Solange Carvalho, Tatiana Saavedra, Sofia Afonso, Carolina Cartola, Cláudia Ramos e Maria Manuela de Carvalho Ribeiro). Todos eles contribuíram, seguindo o critério único do "isto interessa-me, vou filmar". Entretanto, as auto-solicitações passaram a ser acompanhadas de contactos de editoras, bandas ou agentes que pretendem ser incluídos. A rede estende-se mas o canal, o que é sina de tanta coisa boa neste país, subsiste pela vontade de fazer e por "carolice", sem qualquer "financiamento". Interessa aquilo que nele se vai criando, um espaço fiel à "lógica política" de Tiago Pereira. "Não há hierarquia ou categorização musical. Vale tanto a velhinha que não está na indústria e que canta porque gosta como o músico pop rock ou o cantautor que ainda não o é, mas que há-de ser". Tiago chama-lhe "a alfabetização de uma memória musical". Coisa moderna. Neste sentido: "uma marca maior do século XXI é o sentido de híbrido. Estamos muito habituados a pôr tudo em caixinhas, mas cada vez mais caminhamos para um momento em que as coisas não têm que ter nomes, não têm que ter categorias". Que chamaremos, por exemplo, aquilo que vemos quase no final de "Vamos Tocar Todos Juntos Para Nos Ouvirmos"?
Um conjunto de Zés Pereiras minhotos metidos nos seus fatos, liderados por um maestro de óculos escuros e batuta gigante. Ao lado deles, um homem do rock com baixo a tiracolo, amplificador e vários pedais. Os Zés atacam o bombo, o baixista responde. O ritmo torna-se infernal, todos dançam enquanto tocam, o "maestro" mais que todos eles. Rodopia e agita freneticamente a batuta. O que é isto? "Encontrou-se uma linguagem comum que é a linguagem da competição e, de repente, aquilo era mesmo uma banda e tínhamos ali uma coisa quase Battles ou Black Sabbath. Não estás à espera que aconteça no meio de um caminho agrícola. Mas aconteceu". As palavras são de Manuel Fúria e reflecte como o filme, que parte em busca das tradições musicais do Vale do Ave, acompanha a "lógica política" do trabalho de Tiago Pereira.
Nele Manuel Fúria, o ex vocalista dos Golpes que se prepara para editar em Abril "Contempla os Líritos do Campo", homem nascido em Lisboa, mas habitante de Santo Tirso a partir dos três meses de idade, de onde regressou, aos 18, a Lisboa, interage em tempo real, em guitarra eléctrica e em improviso total, com grupos de bombos, gaitas de foles ou filarmónicas em procissões. Nenhum dos intervenientes se sobrepõe ao outro, e não há outro desejo que uma partilha estabelecida de imediato, sem rede.
Quando navega no canal "A Música Portuguesa...", Manuel Fúria gosta do seu lado "libertário, sem filtros". Permite criar um "cenário verdadeiro": "A virtude é tornar possível aperceberes-te que tens realmente um país. Com pessoas, linguagens, com expressões." Fúria é crítico da relação que os portugueses, "principalmente elites mais ou menos esclarecidas de Lisboa e do Porto", ressalva, têm hoje com o país. É uma relação baseada no "exotismo", aponta, que nos leva a encontrar "conservas da Tricana na zona gourmet dos supermercados, mais caras que uma lata de petinga em Hollywood". Agrada-lhe, por isso a realidade que sobressai de uma viagem pelas centenas de vídeos de "A Música Portuguesa...". Nesse país, elenca, existem "os GNR e os Pontos Negros, as Adufeiras de Monsanto e um senhor de Leiria que toca um instrumento desconhecido". Todos igualmente importantes. Todos passíveis de serem aproveitados para que a tradição, tal como defendida por Tiago "não me falem de fusão" Pereira, prossiga o seu rumo. Basta ver. E em "A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria", podemos ver.