Reportagem nas Caxinas: 57 horas de muita reza e algum desespero

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Náufragos rezaram com o terço de Fernando Maravalhas Foto: Adriano Miranda

Saíram de Vila do Conde às dez da noite de domingo. Segunda-feira, atracaram na Figueira da Foz. Tinham capturado linguado e algum peixe miúdo. Era preciso ir à lota despachar aquilo. Tornaram a entrar no mar. O mar estava sereno. Quarta-feira ficaria revolto. O mestre da embarcação Virgem do Sameiro, José Manuel Coentrão, quis aproveitar o bom tempo.

Na terça-feira à noite, estavam as redes lançadas, Coentrão ordenou aos homens que descansassem um pouco. Por ora, ficaria ele de vigia. Quando foi lá abaixo chamar Navegante para o substituir naquela tarefa, a água já lhe chegava aos joelhos. Arrancou os cinco homens ao sono, depressa, depressa: "Acordai! Acordai!"

Não havia qualquer hipótese. "O motor ainda estava a trabalhar, mas a bomba já não escoava", recorda Navegante.

Ninguém sabe - ou quer explicar - muito bem o que aconteceu. Prudenciano Pereira acha que foi um plástico que se meteu na bomba.

Nem vestiram coletes. Só tiveram tempo de saltar para dentro da balsa, que fora instalada havia 15 dias. O mestre ainda atirou um edredão. Lá dentro, apenas meio litro de água por pessoa, alguns comprimidos. Incrédulos, ficaram a olhar o barco, que não tardou a inclinar-se e a ser tragado pelas águas.

Prudenciano ainda tem aquela imagem, nítida, na cabeça. "Estávamos todos a chorar. Até eu estava a chorar!"

A partir daquele momento, foram 57 horas de desnorte, com o terço de Fernando Maravalhas sempre a servir para contar alguma ave-maria ou algum pai-nosso. Pediam a Nossa Senhora de Fátima que os salvasse. Por eles passaram algumas embarcações. Em vão gastaram os quatro fachos de mão que havia na balsa.

Andavam de Norte para Sul, de Sul para Norte, como uma casca de noz. Iam colados uns aos outros para evitar que a temperatura dos seus corpos caísse abaixo dos 35°C. Por mais do que uma vez, o mestre deitou-se em cima de dois dos seus homens. Com esta atitude, tentava aquecê-los, mas também sossegá-los. Fernando Maravalhas entrara em pânico.

O homem, de 44 anos, delirava. Navegante nunca vira nada assim: "Ele gritava que queria ir para o barco, que aquele não era o barco dele. Tirou o casaco. Pôs-se em tronco nu. Nós estávamos cheios de frio. Ele dizia que tinha muito calor. Arranhava a balsa. Parecia louco, não sei... Andava por cima de nós e tudo. Ele, às vezes, queria fazer a vida dele - urinar, não é? Olhe, o mestre teve de o obrigar a ficar direito."

O mestre deu-lhe dois socos. Prudenciano, conhecido pelo seu invejável sentido de humor, amarrou-lhe os pés e as mãos. Não fazia piadas, como é seu costume. Também estava a desesperar. Ao ouvi-lo, ontem, a mulher acrescentava motivos: "Faltava o cigarrinho e o copinho de vinho." A Maravalhas mais do que a qualquer outro. "O que íamos fazer? Atirá-lo para o mar? Não."

"No último dia já não tinha força", admite. Lembra-se de pensar uma e outra vez: "É a nossa morte!" Essa ideia pareceu-lhe certa quando viu Maravalhas puxar as fitas retro-reflectoras que havia na balsa.

Em Vila do Conde e na Póvoa de Varzim, desesperavam os familiares. A mãe de Maravalhas, Maria do Carmo Fangueiro Novo, já se cobrira de luto.

Quarta-feira, fora almoçar a casa da filha, Aurora, a Balazar, freguesia da Póvoa de Varzim. O telefone tocara. Era uma irmã: "Morreram todos!" Maria do Carmo lançou um grito lancinante. O marido não. O marido foi pescador a vida inteira, e algo, o mar, o céu, a conjugação de ambos, dizia-lhe que o filho estava vivo.

A mulher foi a gritar até casa, na Rua da Praia, nas Caxinas, terra de quase toda a tripulação: "Ai! Morreu o meu filho! Já não tenho quatro filhos. Agora, já só tenho três filhos." Os vizinhos começaram a aparecer. Era como se a fé, que a faz ir a pé a Fátima há 20 anos, se tivesse evaporado: "Já não vou mais a Fátima, a minha alegria acabou."

A neta, de 12 anos, também se entregou ao choro: "Se fores receber o corpo, pede o terço do meu pai e dá-me."

Aurora já não sabia como as consolar. Na sexta-feira, pediu ao presidente da junta de freguesia, José Maria Postiga, ajuda psicológica para ambas. Estava o autarca a dizer-lhe que a conseguira quando recebeu um telefonema. Tinham sido salvos por uma equipa da Força Aérea. Maria do Carmo não tirou o luto: "Não acredito! Só acredito quando vir o meu filho!"

O EH 101 Merlin, um helicóptero de transporte médio, trimotor, realizava uma operação de rotina relacionada com a pesca. Avistou-os a 12 milhas, cerca de 22 quilómetros, a noroeste do cabo Mondego. Passavam poucos minutos das 11h00.

O sargento-ajudante Luís Silva desceu pelo guincho e José Manuel Coentrão meteu a cabeça de fora. O mar estava com uma ondulação de cinco metros. Os homens foram içados um a um, todos com sinais de hipotermia. Por volta do meio dia já estavam na Base Aérea de Monte Real. De lá seguiram para o Hospital de Leiria.

O presidente da Câmara de Vila do Conde, Mário de Almeida, ligou logo ao presidente da junta de freguesia. Ele não se fez rogado. Partiu na camioneta cedida pela autarquia em direcção a Leiria. Maria do Carmo e outros familiares aproveitaram a boleia até ao hospital. Só ao ver o filho acreditou.

Ele não parecia saber onde estava. Tremia, tremia. Pronunciava algumas frases sem nexo: "Estou na vigia, estou na vigia. Olha a bóia! Olha a bóia!" A mãe regressará a Fátima, está prometido. Levará o filho "ressuscitado". E levará o terço, que foi recuperado pela Marinha, ontem, na balsa, com outros objectos pessoais.

Regressaram todos a casa menos o filho da mulher pequena, de cabelos curtos, encaracolados. Ele ainda precisa de muito cuidado. Maria do Carmo ia vê-lo hoje. Talvez amanhã ele seja transferido para uma unidade hospitalar mais próxima da casa que partilha com os pais e com a filha - Vila do Conde, Póvoa de Varzim ou Matosinhos.

O mestre veio à frente, de carro, com a mulher e os pais. Os outros atrás, na camioneta.

Centenas de pessoas quiseram dar as boas-vindas aos náufragos. Familiares e amigos estavam mentalmente preparados para receber mortos. Parecia-lhes "um milagre" recebê-los com vida. José Maria Postiga nunca vira nada assim: "A nossa gente acredita muito em Deus. É gente que vive a fé. Entrega-se na altura da desgraça, mas também partilha a alegria." E foi alegria, uma alegria imensa, feita de riso e de choro, que viu na sexta-feira à noite.

Mário de Almeida aproveitou para dizer que acha "imperativo" dotar os barcos de uma radiobaliza com GPS. Só com isso se pode localizar embarcações que se percam em alto mar. O presidente da associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar, José Festas, também.

Hoje, à tarde, há missa para agradecer "o milagre". O dia de ontem era de peregrinações a casa dos sobreviventes. Navegante tinha o baptizado do primeiro neto, mas mesmo assim oferecia um sorriso a quem aparecia. Nunca vivera nada parecido. O mais parecido que lhe acontecera fora cair à água no mar da Irlanda. A água estava demasiado fria. Fora resgatado de imediato. Não diz que não volta ao mar. Um pensamento desses não tem sentido. "Vou continuar a trabalhar. A minha arte é esta. Isto faz parte da vida do mar."

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