Uma girafa que podia ser Alice

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Esta é a história de uma menina de nove anos, demasiado alta para a sua idade e a quem "a mulher que era a sua mãe" chamava "girafa". No primeiro momento desta história, a menina, de quem nunca se sabe o nome, apresenta na escola um trabalho intitulado "Tristeza e alegria na vida das girafas". E este é o título que dá o nome à mais recente peça do dramaturgo e encenador Tiago Rodrigues, que sobe ao palco do Grande Auditório da Culturgest, Lisboa, a 24, 25 e 26 de Novembro e, no próximo ano, estará em cena no Teatro Académico Gil Vicente em Coimbra (19, 20 e 21 de Janeiro) e no Teatro Viriato em Viseu (28 de Janeiro), numa produção conjunta Mundo Perfeito e AnaPereira.PedroGil.

Se é possível ter um espectáculo adulto - e verdadeiro - sobre a infância, Tiago Rodrigues quer estar o mais próximo disso. A forma como o faz não é ter no papel principal uma criança, mas sim uma actriz adulta - Carla Galvão - que entra subtilmente na mente de uma personagem infantil.

Tudo vem de dentro e do próprio texto, mas também dos elementos que rodeiam a personagem central: o seu amigo imaginário de infância, um urso de peluche gigante (Tónan Quito), que representa "o lado negro da criança, radical, egoísta, apaixonado", e aquele que mais intensamente absorve - e exprime - o que há de desolador na realidade em que vive a girafa; mas também o pai (Miguel Borges), e todas as personagens reais ou imaginárias, mas necessárias para que ela concretize, de facto, a sua aventura - Tchekov (também interpretado por Miguel Borges), o Velho, o Pantera e, por fim, Pedro Passos Coelho (todos três, interpretados pelo actor e também encenador Pedro Gil).

O primeiro-ministro de Portugal surge aqui como destino último - qual grande Feiticeiro de Oz, no caminho da Dorothy e dos seus amigos, até à Cidade da Esmeralda - da grande viagem que a menina e o seu peluche, em carne e osso, empreendem pelas ruas de Lisboa.

Um primeiro-ministro, imaginado como uma imagem de poder ou, como Oz, com poderes supostamente mágicos, que não cumpre tal qual o que promete, mas que, na sua forma mais humana, ajuda a personagem principal e os seus amigos a chegarem, por eles próprios, à chave do problema.

"["Tristeza e alegria na vida das girafas"] é um espectáculo adulto sobre a forma como as crianças olham o mundo", resume Tiago Rodrigues ao Ípsilon. É mais do que isso: é, à imagem de clássicos como "O Feiticeiro de Oz" ou "Alice no País das Maravilhas", a "sua" história de uma menina que, ao tentar compreender o mundo, compreende-se a si própria, como num rito de passagem à idade adulta.

"Tristeza e alegria na vida das girafas" gira então à volta da girafa, como "O Feiticeiro de Oz" se centra em Dorothy, Lewis Carroll faz o mundo girar à volta de Alice ou "O Livro da Selva" de Kipling tem como personagem central Mogli.

No último ano, foram estes os livros que Tiago Rodrigues leu ou releu - e ainda vários de Júlio Verne e os "Três Mosqueteiros" - para neles colher a ideia de aventura épica que, na peça, toma a forma de uma viagem urbana, com a crise económica em fundo e que afunda os sonhos dos adultos à frente dos olhos das crianças.

A girafa, como as crianças desses clássicos, "ao transgredir eviver a aventura, ao tentar sobreviver e combater as forças do mal, transforma-se", explica o autor. "No final, sai transformada e neste caso cresceu."

Nesta aventura do século XXI, a menina luta por um bem material (a possibilidade de voltar a ter em casa canal da TV por cabo Discovery Channel) - pensando que aí está a chave da felicidade. E, quando consegue, percebe que não era bem isso que queria ou precisava. Era afinal estar completa e, para tal, ter a seu lado "a mulher que era sua mãe" ausente e, ao mesmo tempo, omnipresente no mundo interior da menina e do pai.

A criança desta história tinha de ser especial, e isso reflecte-se na forma como fala. Esta menina fora do comum decifra e descreve cada partícula do mundo que a rodeia, e fá-lo de forma contagiante porque desafia quem a ouve a descobrir formas novas - ou esquecidas - de ver a simplicidade de todas as coisas.

"Um velho é uma pessoa do tipo adulto que já é do tipo adulto há muitos anos"; "Uma criança é a versão mínima de uma pessoa", diz a própria, e ela, a girafa, criada por Tiago Rodrigues, é uma espécie de "criança-dicionário, que produz significados", num misto de ritual adulto e brincadeira infantil.

Criança em corpo adulto

O palco começa por ser uma sala de aula imaginária onde a girafa apresenta um trabalho na escola, é depois a casa onde vive com o pai, atormentado pelo desemprego e a solidão, para no final ser as ruas da cidade de Lisboa, lugar da aventura da menina com o seu urso de peluche gigante, a quem dá o nome de Judy Garland, e que, com ela, procura o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho para lhe exigir que faça uma lei para ela.

Nesta saga, a criança surge num corpo de actriz adulta. "Não é uma missão minha nem da Carla [Galvão] inventar a criança. É inventar tudo o resto com a certeza de que, ao fazê-lo, a ideia da criança está lá", diz o encenador. "O que é interessante nesse trabalho é o encontro entre a Carla Galvão - a sua personalidade, o seu talento de actriz, as suas técnicas, as suas opiniões e emoções - e a personagem do texto, que é invisível mas está ali. Nesta intersecção, já está a criança."

Ou seja: "A actriz não faz o esforço de sair de si própria para nos dar a ideia de criança. Esta é muito sugerida na própria Carla", completa Tiago Rodrigues.

E para tal, explica Carla, a actriz aposta no despojamento de artifícios para "comunicar simplesmente o texto, através do olhar, da maneira de estar, ser ao máximo o veículo do texto" porque é ele que "transporta esta visão do mundo a partir do olhar de uma criança".

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