"Aplausos? Mas aplausos para quê, para quem?". Pegando na fotografia escolhida para a capa do seu primeiro álbum, Fernando Alvim não gostou daquele instantâneo de pausa, em palco, entre dois temas. Quase dava para perceber as suas mãos a enxotarem a heresia de poder estar a aplaudir-se e a celebrar o seu talento. Depois, fez as pazes com a ideia, quando percebeu que ao seu lado estaria um rol de nomes de cantores, de Carlos do Carmo a Carminho, Vitorino a Amélia Muge. Suspirou de alívio com a ideia de que seriam os outros, sempre os outros, a ser ovacionados por si. Aos 76 anos, no momento em que o seu nome se escreve maior do que os restantes, Fernando Alvim continua a querer desviar a atenção de si.
Descobriu há pouco, mas há muito tempo que entre os acompanhadores é tratado como "o sombra", cognome com aura de figura prestes a entrar para uma qualquer mitologia popular mas cuja justificação facilmente se desvenda. Fernando Alvim foi, de facto, a sombra de Carlos Paredes durante quase toda a carreira do guitarrista, assumindo depois idêntico papel de discreta segunda linha para cantores das mais diversas origens. "Nunca fui muito pretensioso, procurei sempre um certo recato, acompanhar sem grandes malabarismos", diz-nos.
Malabarismos não, que não é homem de estardalhaço ou de complicar o que pode ser simples. Isso por um lado. Por outro, é preciso um talento notável para correr atrás de Carlos Paredes, adivinhar-lhe os andamentos, as variações, antecipar cada fuga do rumo previsto. O que, ainda assim, nem sempre acontecia: "Uma vez num concerto no Olympia de Paris, em 1967, o Paredes, que era um bocado nervoso, começou a tocar e passou para uma coisa completamente diferente que não tinha nada a ver com a variação que tínhamos ensaiado", lembra com satisfação pelos desafios que o guitarrista lhe apresentava. "Estive ali um bom bocado à procura, mas lá me desenrasquei e depois, a certa altura, ele retomou a variação. Ele não tocava todos os dias da mesma maneira, mas a partir de certa altura comecei a não ter dificuldade em adivinhar a respiração dele".
Claro que não foi sempre assim. Primeiro, veio um telefonema de Paredes, que devia ter ouvido Alvim tocar na Emissora Nacional, a desenvencilhar-se entre fados, bossa nova, jazz, canção ligeira e etc., e pedindo que o acompanhasse na interpretação da música para um documentário sobre filigrana a apresentar no Cinema Império. Em vez de um par de semanas, foram 25 anos de parceria, os primeiros três de ouvido encostado à guitarra e à cadência respiratória de Paredes, em ensaios constantes para reagir com a ponta dos dedos antes de haver tempo de a cabeça pensar na melhor solução. No final, quando o instinto estava minuciosamente afinado, gravaram, em 1963, "Verdes Anos".
Em época pré-gravadores que permitissem registar as ideias - os que havia "eram demasiado grandes, não se podia andar com aquilo de um lado para o outro" -, a memória era a principal forma de fixação de uma nova música. Daí que Paredes e Alvim passassem horas ao telefone, cantarolando ideias, e obrigando-se depois a repeti-las vezes a fio para que o cérebro as registasse devidamente. Memória em forma e um bloco de notas - senão, falta de material a vermelho.
Uma vida inteira"Os Fados e as Canções do Alvim" esteve 54 anos à espera de ser gravado. Os mesmos que Fernando Alvim leva de carreira. Razão: falta de tempo. Diz ele: "Às vezes ia para fora, estava uns dias nos hotéis e pensava que ia conseguir, mas depois saíamos ou tínhamos de ensaiar e era complicado compor". Por isso, após ter-se aventurado num ar de peças nos anos 70, só nos últimos dois anos Fernando desatou finalmente o nó criativo que lhe sufocava as composições: o resultado é um disco duplo, de 18 fados e 17 canções. Era a altura certa. O corpo tinha começado a enviar mensagens de que a estrada se tornara mais dura e era provável que estalasse de tanta música entupida lá dentro. Saiu assim, de jorro.
Questão importante: o facto de o segundo CD do álbum de Fernando Alvim ser dedicado a "canções" é explicado pela largueza de recursos do viola. Aprendeu a tocar fado a olhar para as mãos dos músicos do Café Luso, a tocar bossa nova com um músico dos Jograis de São Paulo, a tocar jazz graças a métodos de guitarra e aos discos que ia ouvir ao Hot Clube com Luís Villas-Boas quando este regressava de malas cheias dos Estados Unidos. Mas foram sobretudo as "fadistices" a encantá-lo. Os músicos corriam de casa em casa, tocavam a desoras, partilhavam experiências musicais para lá do envelope com notas dentro. Eram amadores. Fernando Alvim trabalhava a conferir guias de remessa e facturas e pesavam-lhe os olhos depois das noitadas em que tocava nos hotéis e seguia para o Luso ou para, por uma vez, substituir um amigo no Ritz até às sete da manhã. "Nesse dia fui para a casa de banho dormir uns bocados e pedi aos colegas para me chamarem se houvesse alguma coisa". Os mesmos colegas que "ficavam um bocado amachucados" quando chegavam ofícios que requeriam ministerialmente a presença de Alvim a acompanhar Carlos Paredes nos mais variados lugares do mundo.
Mas por muito mundo que tenha conhecido, pouco é comparável à estrada que em 1964 ligava Lisboa a Grândola. Na viagem para lá, Zeca Afonso ao volante, tiveram um furo para os lados de Alcácer do Sal. Como nem Alvim nem Paredes tinham grande jeito para a mecânica, ensaiaram "numa ribanceirazinha" enquanto Zeca trocava o pneu. Na viagem para cá, Zeca Afonso ao volante, para espantar o sono Zeca foi aperfeiçoando uma melodia inspirada pelos ares alentejanos. Quando chegaram a Lisboa, "Grândola Vila Morena" estava terminada. Alvim estava lá. No banco de trás, mas sempre presente.