Pede desculpa pelo atraso, diz-se exausta pelas viagens, mas quando se senta revela disponibilidade para falar sobre "Metals", o novo álbum de originais, que sucede ao improvável sucesso de "The Reminder" (2007). Com esse disco alcançou grande projecção, vendendo milhões, ganhando galardões e dando concertos para assistências à beira do êxtase.
Aliás a sua presença em Portugal é reveladora da ascensão progressiva. Em 2002 esteve no Festival Número, em Lisboa, como cantora de apoio de Gonzales - "esse festival foi importante porque foi aí que conheci Erlend Oye [Kings Of Convenience] de quem sou amiga", recorda. Regressou em 2005, sozinha com a guitarra, para um concerto no Fórum Lisboa. Em 2008, na Aula Magna de Lisboa e no Coliseu do Porto, acompanhada da sua banda, aconteceu a aclamação entusiasta.
Não foi só em Portugal, foi em todo o mundo. De repente saltou para a ribalta. Quando terminou a digressão desse disco estava exausta, fisica e emocionalmente. Durante ano e meio regressou à Toronto da adolescência, aí compondo novas canções, antes de se encontrar na Califórnia com dois cúmplices (Gonzales e Mocky), que a ajudaram a co-produzir um álbum coeso, de canções densas e introspectivas, que revelam que deseja ser mais do que o poster do quarto preferido de quem a descobriu apenas por causa do êxito da canção "1234".
Depois de se ouvir o álbum fica-se com a ideia que é mais coerente em termos de ambientes do que o anterior. Teve a ver com o facto de não ter sido composto entre viagens?Sim. O anterior foi sendo composto quando andava de um lado para outro. Cada canção era motivada por lugares, emoções e imagens muito diferentes entre si. Com o novo disco foi diferente. Não foi feito aos pedaços, pela primeira vez na minha vida.
Essa forma de compor foi contingência ou necessidade?Foi uma enorme urgência. De repente tomei consciência que tinha andado os últimos sete anos entre viagens. O único sítio onde conseguia estar isolada era na casa de banho do autocarro das digressões... [risos]. E decidi que precisava de me isolar, de voltar a estar em silêncio. Escrevi todas as canções no último Outono. Parece-me que soam mais semelhantes entre si por isso.
Em todos os seus discos existe um grande ecletismo sonoro. Passa de género para género com facilidade. Diria que neste se aproximou mais de uma possível identidade, foi aquele onde encontrou a sua voz?Talvez. O facto de ter tido tempo e de poder estar recolhida foi determinante. A verdade é que nunca fiz parte de nenhuma família musical. Os meus gostos sempre foram eclécticos e sempre participei em projectos diferentes. Talvez agora seja menos camaleónica, mas não foi uma decisão reflectida. A maior parte destas canções possuem uma qualidade "bluesy" mas apenas porque são o reflexo da minha banda sonora interna.
É também uma obra mais introspectiva e complexa, emocionalmente. Foi uma opção deliberada para se distanciar de canções de sucesso do anterior álbum, como "1234", que eram mais luminosas?Acabou por ser produto das circunstâncias da minha vida, o que me move e motiva. Todos os meus discos acabam por reflectir a minha vida em determinada fase. Constituem respostas inconscientes de a organizar, de a festejar ou nem por isso. Acima de tudo, tento ser honesta. Depois do final da digressão de "The Reminder" tirei umas férias de ano e meio e isso foi saudável. Isolei-me do mundo da música. Precisava de distanciar-me e recomeçar de novo. Interessei-me por outras coisas e desenvolvi um novo vocabulário. Não estava interessada em repetir-me. Estava empenhada em fazer um disco verdadeiro que captasse aquele momento. Do ponto de vista operacional, foi quase como gravar ao vivo em estúdio, sem grande rede, com todos os envolvidos a confiarem uns nos outros.
O ano passado, em entrevista a Gonzales, este dizia que nunca gostou de "1234" e que por ele não teria sido incluída no anterior álbum. Ironicamente acabou por ser o passaporte para o sucesso. Foram apanhados de surpresa?Foi uma canção difícil de gravar, inicialmente não me sentia confortável com ela, tinha dúvidas porque era diferente do resto do disco, mas decidi incluí-la. É claro que foi surpreendente quando começámos a perceber que as pessoas se tinham fixado naquela canção. A adaptação entre ser alguém que algumas pessoas conheciam e ser popular foi difícil de gerir ao início. De repente, eu era a moda do momento, eu, que sempre passara despercebida em todo o lado. Mas, enfim, ainda não sou a Britney Spears. Posso andar à vontade na rua.
Mas "The Reminder" vendeu muito bem, obteve galardões importantes, esteve nomeada para os Grammy, enfim, tornou-se conhecida em todo o mundo. Poderia com este novo disco rentabilizar esse sucesso.Não quero ser a cantora de "1234", que é uma canção de que gosto, que faz sentido num contexto global de um álbum, mas que está longe de ser a coisa mais interessante que fiz. Não quero renegar o sucesso, mas não pode ser isso que me guia.
Voltou a colaborar com velhos conhecidos, como Gonzales ou Mocky. O facto de se conhecerem há muito é essencial para estabelecer a tal relação de confiança de que falava há pouco?Claro, há muitos anos que nos conhecemos. Existe uma grande entreajuda entre nós e isso é qualquer coisa de fantástico. Sabemos que esta semana podemos estar a trabalhar no meu disco, mas na próxima pode ser o disco do Mocky. E isso acontece naturalmente, porque sabemos que cada um de nós tem a sua individualidade e a sua história pessoal. Conseguimos deixar os egos de lado, sem perdermos a nossa identidade, quando se trata de trabalhar uma ideia em conjunto e isso é incrível. A confiança vem daí. Sou capaz de fazer uma "demo" ao piano e depois eles chegam com as suas ideias e aquilo funciona.
Ao longo dos anos tem consolidado um percurso a solo, mas mantém-se numa bolha familiar, colaborando com os seus amigos canadianos. Para além de Gonzales, Mocky ou Peaches, há ainda os Broken Social Scene. É uma zona de conforto poder ter essas pessoas à sua volta?Do ponto vista humano sim, mas do ponto de vista artístico é o contrário: é a possibilidade de poder colaborar com eles que me leva para zonas que normalmente não são as minhas.
Há dez anos, quando eles resolveram trocar Toronto pela Europa, inicialmente Berlim, foi a única que ficou. Quando saiu acabou por escolher Paris. Por alguma razão?Porque Londres era bem mais caro... [risos]. E porque Berlim é uma cidade demasiado electrónica para mim. Não é fácil ouvir um instrumento acústico naquela cidade... [risos]. Nessa altura vivia num apartamento com Peaches, quando ela, Gonzales e Taylor Savvy resolveram ir para Berlim. Mocky foi para Amesterdão. Todos deixaram Toronto porque tinham conseguido contratos com a editora Kitty Yo de Berlim. Eu tinha começado a colaborar com Broken Social Scene, foi por isso que fiquei. De alguma forma, ainda bem, porque acabaram por ter problemas com a Kitty Yo... [risos].
Nos últimos dez anos passou parte considerável do tempo a viajar. Há algum local que considere ser mesmo a sua casa?Sim, Toronto. Mesmo quando estou em Paris é em Toronto que penso quando imagino essa concepção de casa. Até por isso foi importante ter composto este disco num só lugar. Todos os meus outros álbuns foram feitos enquanto me reajustava a viver em diversos lugares. Passava o tempo a readaptar-me. É como se nunca criasse raízes. O reverso é o prazer dos pequenos encontros, das conversas acidentais, quando se está em viagem.
Precisa de isolamento, de privacidade, para escrever?Depende. Para mim é um processo muito importante, mas nem sempre me é fácil. Gonzales, por exemplo, é capaz de estar a tocar ao piano e criar uma letra para uma canção em simultâneo. Para mim não funciona assim. A letra é uma parte importante daquilo que faço, embora na maior parte das vezes me pareça que as pessoas se estão nas tintas para elas. Eu dou-lhes muita importância. Em parte é por isso que deixei de fazer versões, custa-me cantar as palavras de outros. Não me importo de produzir na companhia de Gonzales ou Mocky, mas porem-me palavras de outros na minha boca é mais complicado. Escrever é um processo muito lento.
Anda com um caderno de apontamentos durante o dia?Sim, mas passam-se dias em que nada me chama a atenção. Mas, depois, de repente, um dia, alguma coisa acontece.
O que é que foi acontecendo nesse Outono do ano passado quando escreveu todas essas canções que integram o álbum?Às vezes as canções são um universo tão privado que nem sempre sei exprimir externamente o que são, mas diria que algumas delas tratam da solidão e da passagem do tempo, da consciência que à minha volta há pessoas que vão envelhecendo ou morrendo. Durante muito tempo tendia a idealizar as coisas, romantizava-as, como se procurasse sempre o lado positivo e esquecesse o negativo - talvez por isso seja cantora e não banqueira. Ainda sou assim, mas hoje consigo encontrar um ponto de equilíbrio. Talvez esteja mais próxima daquilo que é a realidade. Talvez por isso este disco tenha, para algumas pessoas, mais zonas sombrias. Não sei. Para mim não são sombrias, são íntimas. Apenas isso.
No processo de feitura das canções pensa na forma como podem ser tocadas ao vivo, nem que seja inconscientemente?Talvez isso não tenha estado tão presente desta vez porque passei os últimos anos em digressão e como reacção não queria pensar nisso. Normalmente ando na estrada com homens e também por isso quis que esse disco tivesse um coro de mulheres para depois as poder levar em digressão e a coisa ficar mais equilibrada... [risos]. No passado quando tinha coros eram os homens da banda que os faziam, mas é diferente se forem mulheres a fazê-lo. Queria uma coisa mais harmónica e tive sorte em encontrar as mulheres certas. Na próxima digressão também serei eu a tocar guitarra inteiramente. Quero assumir este disco de uma forma como nunca assumi nenhum outro.