A maldição das “Ilhas Encantadas”

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Amália num papel tão diferente da sua imagem pública Foto: DR

A aura maldita de “As Ilhas Encantadas”, estreado em 1965, transcende o cinema e deriva de este ter sido o único papel dramático de Amália Rodrigues. No papel de uma mulher abandonada numa ilha inóspita, a fadista não canta e mal fala, numa personagem que apenas surge já o filme leva uma boa meia hora de duração.

Introduzido brevemente pelo seu produtor, António da Cunha Telles — que evocou o desastre comercial da estreia, devido em grande parte à incapacidade do público aceitar Amália num papel tão diferente da sua imagem pública —, o único filme de fundo do luso-francês Carlos Vilardebó é um objecto ferozmente “não-convencional”, como aliás convém a uma adaptação de um escritor tão resistente à narrativa tradicional como Herman Melville. A novela que lhe está na base é uma colecção de “esboços” inspirados pelas ilhas Galápagos, que Vilardebó adaptou a um arquipélago nomeado apenas como “as Encantadas”, com vista a construir uma atmosfera, mais do que uma história.

Esse sensorialismo é visível na deslumbrante fotografia de Jean Rabier, no evidente cuidado posto nos enquadramentos e nas próprias movimentações, altamente estilizadas, dos actores. E é destruído por uma montagem que tenta forçar esse sensorialismo a caber numa estrutura narrativa, sugerindo uma tentativa de “salvamento” do filme durante a pós-produção. A alternativa seria achar que o filme foi literalmente “montado com os pés”, o que implicaria negar a claríssima aposta estética de Vilardebó, curiosamente um homem que fez toda a sua carreira de cineasta no formato curto e que não voltou a dirigir uma longa depois do fracasso desta produção luso-francesa.

Em qualquer caso, “As Ilhas Encantadas” é uma fascinante cápsula do tempo que contém em si o embrião de um grande filme romântico, na relação peculiar construída entre os dois “náufragos” das Encantadas. De um lado, Amália como figura trágica, hierática, de heroína grega como a viúva que o destino abandonou à solidão, sugerindo um talento dramático que o cinema nunca soube explorar. Do outro, Pierre Clémenti como o andrógino marinheiro francês que deserta para lhe fazer companhia, com sugestões de amor e incesto que o filme aflora visual mais do que narrativamente, inscrevendo-se no percurso que o actor - falecido em 1999, aos 57 anos de idade - fez no cinema de autor europeu de Bertolucci ou Buñuel.

O valor das “Ilhas Encantadas” é essencialmente histórico, mas a aura de filme maldito já ninguém lha tira.

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