Ne varietur

A publicação recente da segunda edição de "Obra Poética" de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) merece alguns comentários.

Entre Novembro de 2003 e Outubro de 2004, a Editorial Caminho publicou, em 14 volumes, a edição definitiva desse vasto "corpus" poético. Tal empresa ficou a dever-se a Luis Manuel Gaspar, como sabe muita gente e Maria Andresen Sousa Tavares confirmou em carta publicada no "Jornal de Letras" de 17 de Setembro de 2003: "Por equívoco [...] é-me atribuída a coordenação, com Luis Manuel Gaspar, do levantamento, reunião e organização de inúmeros poemas e outros textos dispersos que foram sendo publicados durante décadas, por Sophia, em jornais, revistas, etc. [...] De facto, a Luis Gaspar deve-se todo o trabalho de busca de dispersos, inventariação de poemas abandonados de uma edição para outras, inventariação de variantes, assim como o respectivo acerto e aparato crítico. [...] O seu a seu dono." Esse minucioso trabalho inclui verbetes biobliográficos, opções de ortografia e demais aspectos de natureza editorial.À época, escrevendo sobre a edição conjunta dos 14 volumes, lamentei que não tivesse sido possível reunir em volume único toda a poesia de Sophia, a quem devemos a nitidez da dicção, o paganismo visionário, uma ética radical, o sentido trágico da existência, empenho nas causas sociais e o convívio com as coisas e os seres.

Finalmente, em Outubro do ano passado, surgiu o esperado volume único de "Obra Poética", organizado por Carlos Mendes de Sousa, que mantém sem alterações significativas a fixação de texto estabelecida por Luis Manuel Gaspar. Neste volume são pela primeira vez divulgados 29 poemas dispersos (recolhidos por Gaspar), bem como um inédito de 1943 que o PÚBLICO publicou na sua edição de 23 de Julho de 2009.

Afirma Carlos Mendes de Sousa, na Nota de Edição (pp. 7-8), que as edições de 2003-04, "designadas definitivas, foram organizadas por Luis Manuel Gaspar." Mas o cotejo dos 14 volumes permite verificar: Vols. 1-7, Edição de Luis Manuel Gaspar; Vols. 8-10 e 12, Edição de Maria Andresen Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar; Vols. 11, 13-14, idem, com a ressalva de que a fixação de texto (creditada a Gaspar nos volumes precedentes) passou a ser feita "segundo critérios acordados com" a filha da autora. Diz ainda Sousa que a presente edição "segue e actualiza os critérios de fixação de texto" (p. 7). Por "actualizar" podemos considerar a opção tomada relativamente a determinadas idiossincrasias ortográficas de Sophia.

Exemplo óbvio será o do verbo dançar, que Sophia grafava com 's': "Dansam as árvores puras sacudidas" (cf. "Dia do Mar", 1947, e edição "definitiva" de 2003). Em mais do que uma entrevista, Sophia reiterou esse seu modo de escrever: "A única palavra portuguesa cuja ortografia precisa de ser mudada é dança, que se deve escrever com 's', como era antes, porque o 'ç' é uma letra sentada, uma letra pesada. Escrevo com 's', mas há sempre o desastre de os tipógrafos ou as pessoas que me passam os textos à máquina acharem que é um erro e emendarem para 'ç'..." ("Diário de Notícias", 24-11-94). Isso mesmo é verificável na exposição "Uma Vida de Poeta", recentemente organizada por Teresa Amado e Paula Morão na Biblioteca Nacional. Sousa discorda: "Não tendo a autora determinado que tal singularidade passasse a ser regra na sua obra, seria abusivo considerar que Sophia pretendeu instaurar um preceito de uso ortográfico próprio" (p. 8). Assim desapareceu essa "marca textual".

Numa edição tão cara, compreende-se mal que a paginação seja pouco rigorosa no respeito da divisão estrófica dos versos. Dito de outro modo, salvo para conhecedores profundos da obra de Sophia, a mudança de página não permite ver (a olho nu) onde termina uma estrofe e começa outra. Minudências? Decerto. Sucede que em poesia a noção de espaço é intrínseca à leitura. Nesse particular, a edição 2003-04 tem uma fiabilidade acrescida.

Nesta segunda edição, saúde-se (entre outras) a correcção operada no poema "Crepúsculo dos Deuses" (p. 506; cf. "Geografia", 1967), cuja estrofe final fora em Outubro de 2010 acoplada à anterior: "Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra quebrado / Phebo já não tem cabana nem loureiro profético nem fonte melodiosa / A água que fala calou-se."Fica o mais importante: uma obra ímpar.

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