Pina será sempre Pina

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Diversamente do que o aparato mediático em torno de "Pina", o filme de Wim Wenders, possa deixar entender, a relação entre Pina Bausch e o cinema é uma história de mais de 30 anos, com diversos episódios importantes - e não falo do registo em filme de peças suas, como "A Sagração da Primavera" ou "Café Müller", mas de filmes sobre o seu trabalho, ou que ela "habita".

Lembro-me do primeiro choque, quando nada sabia de Pina: foi no Festival de Veneza de 1980, com "Ensaio Geral", documentário de um dos meus cineastas electivos, Werner Schröter, rodado meses antes no Festival de Teatro de Nancy. Fiquei siderado - não tenho outra expressão - pelos extractos de "Café Müller". Havia qualquer coisa que me trazia à memória o clássico do expressionismo alemão, "A Mesa Verde" de Kurt Jooss, obra de 1932 - intuição certeira como vim a saber, pois que Jooss foi uma das influências maiores em Pina. Mas era também algo de diferente, na presença majestática e dolorosa daquela mulher de olhos fechados, na angústia de uma despedida ao som do "Remember me, remember me", o Lamento da Dido de Purcell - a própria Pina, no único dos seus trabalhos em que foi protagonista. De Pina Bausch recordarei sempre a incrível força daquele corpo franzino, o olhar, sobretudo isso, "os olhos penetrantes", e os cigarros que se sucediam um após outro.

Depois houve o "golpe de teatro" - ou antes de cinema. Seduzido pelas obras de Pina, e em particular por "Café Müller", Federico Fellini convidou-a a interpretar o papel da Princesa Lherimia em "E la nave va..." (1983). Um dos traços mais distintivos dela era o seu "olhar penetrante" - como aliás é acentuada no filme de Wenders, alguém dizendo até que "mesmo de olhos fechados ela conseguia ver tudo". Paradoxo: inspirando-se por certo dos olhos sempre fechados de Pina em "Café Müller" Fellini fez da princesa uma personagem cega, mas acontece que essa não-visão não anula, antes acentua, a força extraordinária daqueles olhos, e a Princesa

Pina é a mais imponente personagem do filme.

De 1983 é também o documentário de Chantal Akerman "Un jour Pina a demande"/Um dia Pina perguntou". Durante cinco semanas a cineasta belga seguiu a companhia, apresentando "Komm Tanz mit mir/ Vem dançar comigo", "Kontakhof", "Walzen" e "Nelken" - do último se incluindo esse momento extraordinário em que Lutz Förster interpreta em linguagem gestual "The Man I Love".

Mas atente-se ao título: "Um dia Pina perguntou" é uma introdução a uma metodologia única. Na preparação de uma nova peça, sempre Pina punha questões aos intérpretes: recolhendo um exemplo citado no filme de Wenders, "Quais as nossas aspirações? De onde nos vem todo o anseio?". Eles ficavam perplexos, sem saber bem o que responder, ou só o fazendo mais tarde, como podiam fazer um movimento. E era sobre essas respostas que Pina ia construindo o espectáculo.

É assaz lamentável que um diferendo mantenha há anos bloqueado o documentário de Akerman, que é das melhores introduções ao universo criativo de Pina Bausch.

Faltava um passo: o da própria Pina realizar um filme. Foi "Die Klage der Kaiserin/O Lamento da Imperatriz". Por um lado não deixa de ser mais uma "peça" de Pina Bausch. Por outro, a mediação da câmara torna-o num olhar de Pina sobre o seu trabalho. A experiência não foi totalmente feliz, porque a obrigou a um tipo de trabalho que lhe era alheio e lhe deixou alguma insatisfação - a montagem.

Lembro-me da estreia do filme no Forum de Berlim em 1990. A sessão foi à meia-noite, horário muito apropriado para a própria, que sempre gostava de ficar a falar, a fumar, a beber até às 4h da manhã. E ela lá estava, no debate após a projecção, sucinta e esquiva, como de regra era."O Lamento da Imperatriz" introduzia ainda assim, por possibilidade própria do cinema, uma nova dimensão no seu trabalho: fazer cenas também em exteriores.

Desde "Viktor" em 1986, feito a partir de uma residência em Roma, que se iniciou um novo capítulo, que permaneceria uma constante de Pina: trabalhos feitos a partir da experiência de cidades específicas, não um "retrato" ou uma apreensão pitoresca, mas a partir do amontoado de sensações que esses locais suscitavam, de algum modo paisagens imaginárias. Depois a peça sempre tomava forma em Wuppertal, onde era estreada, antes de ser apresentado no local da residência.

Se há filme que preciosamente documenta esse labor é "Lissabon, Wuppertal, Lisboa" de Fernando Lopes, que segue o percurso de construção e apresentação de "Mazurca Fogo", feita quando da Expo-98. Com o filme de Akerman, é uma das melhores introduções aos métodos e universo criativo de Pina Bausch.

Em 2002, outro choque: "Fala com Ela", obra-prima de Pedro Almodovar. O filme começa, o pano abre-se e ouvimos ainda o "Remember me, remember me" do "Dido e Eneias" de Purcell, "Café Müller" uma vez mais - como veremos também "Mazurca Fogo". Mas não se trata só de uma "presença" de Pina, ou antes essa é uma presença que impregna todo o filme, com a bailarina que está em coma há anos e a quem um homem, o que fala com ela, descreve "Café Müller" e relata o que viu e sentiu, aquelas duas mulheres da peça que ele descreve como "sonâmbulas". Compreendendo magnificamente Pina Bausch, Almodovar tocava-lhe num aspecto essencial: a expressão dos sentimentos.

Não posso ignorar tão fortes memórias e um tão importante lastro ao ver agora "Pina" de Wim Wenders e "Sonhos de Dança" de Anne Linsel e Rainer Hoffman. Depois da morte de Pina, o Tanztheater Wuppertal continua a apresentar as suas obras - ao contrário do que tão lamentavelmente sucede com a companhia de um Merce Cunningham. Mas se Pina será sempre Pina é também por este conjunto de filmes.

Pouco me interessa saber se este é o melhor filme de Wenders em muito anos, tal a insignificância que atingiu. A questão, sim, é a de saber se a obra constitui um retrato e uma homenagem a Pina. A força motriz para a concretização do projecto mesmo depois da morte da coreógrafa foram os bailarinos, que insistiram com Wenders. E eles ali estão, aquelas presenças que nos foram sendo reconhecíveis ao longo de anos, Dominique Mercy, Josephine Ann Endicott, Malou Airado, Nazareth Panadero, etc, num testemunho ímpar do trabalho com Pina.

Wenders já tinha passado por Wuppertal num dos seus mais belos filmes, "Alice nas Cidades" (1974). Seguindo as pisadas da própria Pina em "O Lamento da Imperatriz", não permaneceu fechado nas paredes do teatro, antes filmou cenas em exteriores. Se o filme incide em "A Sagração da Primavera", "Café Müller", "Kontakthof" e "Vollmond", há extractos de outras peças, sobretudo nas cenas em exteriores, como aquela com o hipopótamo, que é de "Arien".

Mas a questão crucial é o uso do 3-D. E inevitavelmente acarretando outra: qual é o "lugar" do espectador? Diria que não somos meros observadores, antes "observadores participantes", transportados para dentro do palco, para a profundidade do espaço, tornando-nos mais cúmplices da fisicalidade e do impulso vital das peças de Pina - "dancem, dancem, senão estamos perdidos".

Mas o destaque dado ao filme de Wenders está a colocar na penumbra um filme como "Sonhos de Dança" que é um testemunho fascinante da arte e da presença de Pina Bausch. Tenho-o por um dos mais belos filmes que vi o ano passado, e ao revê-lo de novo me senti comovido e transportado em euforia. E no entanto noto que ele é estranhamente ignorado pelos críticos de cinema.

De "Kontakthof" fez Pina duas outras versões, uma para maiores de 65 anos, outra para adolescentes. É uma montagem desta última que seguimos, com Jo (Josephine Ann Endicott) e Bénédicte Billiet a dirigirem os ensaios. O trabalho do olhar é minucioso e seguido durante cerca de um ano. Vemos literalmente a peça tomando forma, vamos conhecendo mais de perto os adolescentes e há a angústia deles quando se aproxima a chegada de Pina, qual grã-sacerdotisa. E de novo a vemos e ouvimos a incitar que expressem os sentimentos, que "são melhores quando são vocês mesmo". "Sonhos de Dança" é um admirável exemplo da arte ímpar e do magistério de Pina Bausch.

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