O buraco da memória

De cada vez que pegamos num romance, é sabido, estabelecemos um acordo tácito com o autor: suspendemos a descrença e aceitamos o faz-de-conta. Pelo que as melhores aberturas são, por norma, aquelas em que nem sequer nos lembramos de que há esse acordo e simplesmente avançamos.

Nisso, "Deixem Falar as Pedras", terceira obra e segundo romance de David Machado, é exemplar: à primeira frase - um simples "As minhas mãos apertam o pescoço do António com força e imediatamente me lembro de uma das histórias do meu avô" - sucumbimos à tentação normalmente atribuída apenas a porteiras mas omnipresente na raça humana: saber o que está a acontecer na vida dos outros.Reparem na seguinte sequência. A terceira frase do primeiro parágrafo é: "Sinto o sangue do António vibrar-me nos dedos, da mesma forma que um dia o inspector Dias sentiu o sangue grosso do meu avô pulsar-lhe através da pele". No segundo parágrafo, o narrador afiança que "nem sequer devia estar" ali, porque regra geral àquela hora vai "ao quiosque em frente da escola consultar as páginas da necrologia nos jornais", justificando assim o hábito: "Depois daquilo que aconteceu ao meu avô (por minha causa) é o mínimo que posso fazer". Percebemos que a voz é de um adolescente, queremos saber por que raio está a apertar o pescoço ao António e o que é que isso tem a ver com o avô e porque é que o narrador diz que o que aconteceu ao avô é culpa sua.

A primeira grande mais-valia de "Deixem Falar as Pedras" reside aqui: uma consciência apurada dos efeitos de narrativa e do "timing" de distribuição da informação, do valor das micro-histórias e do respeito pelas personagens secundárias - visível quando, mais à frente, um homem garantir que escapou três vezes à morte porque tem garganta de tubarão.

Estas qualidades seriam suficientes para contar uma boa história, mas o livro arrisca pela memória do país adentro e gradualmente vai-se tornando um trabalho sobre a identidade, a memória, a distância entre o país rural e o país urbano, o pré e o pós-25 de Abril.

Narrado por um adolescente obeso, enamorado de uma vizinha anoréctica que partilha com ele o amor por bandas aproximadas do metal, o romance começa a convencer ao conseguir encontrar uma voz credível para este moço. Intuímos que por trás dos seus demónios está uma fractura que reside na família - Machado, com maturidade, não mostra a "falha" familiar de forma pornográfica, antes acumula pequenos indícios.A narrativa principal surge por elipse, quando o miúdo recorda a vinda do avô paterno de Lagares para Lisboa, contra a vontade do próprio pai. O avô é o elemento disruptor: tem dedos a menos numa mão, diz palavrões, não respeita as regras da casa, conta histórias de sangue e terror. Este avô exerce um imenso fascínio sobre o neto, que assume a dor que este carrega. Quando o avô desiste da sua vingança e passa os dias a ver telenovelas (delicioso humor cruel), o neto está pronto a, por assim dizer, dar à narrativa do avô um fim digno.Tudo se reporta ao tempo da outra senhora, na altura em que o avô estava noivo. Na madrugada do seu casamento, acorda com o barulho de tiros - um suposto (é essencial notar que tudo neste romance é "suposto") bando de guerrilheiros da Guerra Civil de Espanha que se havia acantonado junto à sua aldeia estava a ser atacado pela polícia. O irmão do avô passara a noite com uma das raparigas do ajuntamento, facto que foi transmitido às autoridades de forma deliberadamente deturpada - e em vez do irmão é ele que é enclausurado. Este é apenas o primeiro de um conjunto de acasos rocambolescos (quando não doentios) que atiram o avô para um vida de desgraças consecutivas.

Machado, escritor consciente das tramóias da arte da narrar, sabe que tem de haver uma justificação para o neto nos contar a história do avô, pelo que cria um "motivo", o mais óbvio e eficaz deles: a necessidade que o neto sente de reportar a verdade à ex-noiva do avô. Ao contar o passado do avô, o neto dá-nos, para cada facto, as várias versões que correram na época: a do avô, as que iam na boca do povo, as que ficaram registadas em livros oficiais (como os da polícia).

É aqui que o livro se torna maior: o neto "herda" a maldição do avô, torna-a sua. No entanto, o que ele toma como seu é um pedaço de história visto pelos olhos do avô (que podem muito bem distorcer o real). Pelo que nunca sabemos exactamente onde reside a verdade.

Há uma espécie de moral triste nisto: a nossa identidade é o rosto que as nossas memórias desenham; e no entanto somos capazes de escolhê-las, distorcê-las ou até de "viver" as dos outros e assim transformar os contornos do Eu. (Se isto fosse geometria poderíamos chegar a um corolário: qualquer vitória que obtenhamos sobre o passado é uma vitória ilusória; a vitória só deve ser procurada em nome do futuro. Mas, curiosamente, isto não é geometria.)Há algo de profundamente humano nesta história de pides e fascismos, de amores e azares, de como se perde uma vida lá onde as cabras pastam e tantos anos depois se influencia o futuro de um neto. Algo que está para lá de técnicas de escrita, algo que - temo - o país que aqui está retratado não terá tempo nem paciência para olhar com atenção.

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