Foi um dos pioneiros da História e das Ciências Sociais em Portugal, devendo-se-lhe em especial a renovação e actualização da investigação sobre os Descobrimentos e a expansão portuguesa integrada numa perspectiva global, trabalho que materializou em dois livros fundamentais, “A Economia dos Descobrimentos Henriquinos” (1962) e “Os Descobrimentos e a Economia Mundial” (editado em dois volumes, em 1963 e 1970).
“Não desvalorizo o papel do António Sérgio ou do Jaime Cortesão, mas acho que Vitorino Magalhães Godinho é o primeiro grande historiador moderno em Portugal”, diz ao PÚBLICO o historiador Manuel Loff, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Manuela Mendonça, presidente da Academia Portuguesa da História, em declarações à Lusa, considera Godinho “uma referência, e o último de uma geração de ouro da historiografia portuguesa”. A historiadora sublinha ainda “os novos contributos dados por Magalhães Godinho no estudo da História, quer na conceptualização quer na metodologia, fortemente influenciados pela École des Annales, de que foi membro”.
Vitorino Magalhães Godinho interessou-se igualmente pela História de Portugal moderna e contemporânea, em estudos que vieram também reformular perspectivas de análise, como nos trabalhos “A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa” (1971) e “Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar, Séculos XIII-XVIII” (1990).
Na biografia que dedica a Vitorino Magalhães Godinho no sítio do Instituto Camões, o historiador seu discípulo Joaquim Romero Magalhães escreve: “Das suas lições de rigor erudito, de alargamento metodológico e da problematização das fontes como objecto cultural, de ensaio de quantificação e de cruzamento com as diferentes ciências sociais, de fundamentação teórica e de aplicação de uma visão histórica aos diferentes domínios do saber, de cidadania activa resultou uma notável renovação dos estudos de História em Portugal”. E cita, a propósito, uma afirmação do próprio Magalhães Godinho, que lembrava que “não é possível analisar os problemas da realidade portuguesa contemporânea sem os inserir na trama da evolução do nosso país, quer dizer, sem estudar as condições de formação do mundo em que vivemos, a génese da nossa cultura, da nossa sociedade, da estrutura político-económica de Portugal”.
Formação em LisboaVitorino Magalhães Godinho nasceu em Lisboa em 9 de Junho de 1918, filho de um oficial do Exército e político republicano, Vitorino Henriques Godinho, figura que se mostraria determinante na sua formação política.
Fez os estudos secundários nos liceus de Gil Vicente e de Pedro Nunes, em Lisboa, tendo sido também na Faculdade de Letras da capital que se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas (1940), com a tese “Razão e História”. Torna-se professor extraordinário nesta faculdade, até 1944 (dois anos antes, tinha casado com Maria Antonieta Ferreira). Ruma depois a Paris, onde se torna investigador no Centre National de la Recherche Scientifique. Na capital francesa, estuda e priva com os grandes nomes da École Pratique des Hautes Études, entre os quais Lucien Febvre, Fernand Braudel e Ernest Labrousse, tendo deles bebido as novas metodologias de análise histórica desenvolvidas em volta da revista “Annales”.
“Quando chegou a França, ficaram muito admirados, porque ele tinha já um tal conhecimento, uma tal quantidade de informação, que aqueles sábios não lhe podiam ensinar grande coisa”, recorda Eduardo Lourenço sobre este período da vida de Godinho. O filósofo e ensaísta continua: “Contaram-me que o [Fernand] Braudel disse isso mesmo a alguém: ‘Não se lhe pode ensinar nada’. Tinha muito prestígio nos meios académicos franceses. É uma das grandes figuras da escola dos ‘Annales’, com o Braudel e o Febvre”.
Em 1954, Godinho dá aulas na Universidade de S. Paulo, no Brasil, e, no final da década, faz o doutoramento de Estado na Sorbonne, de novo em Paris, com a tese que depois será publicada em Portugal com o título, já atrás referido, “Os Descobrimentos e a Economia Mundial” (que teria uma edição definitiva em 1983-4).
Ministro da Educação e CulturaDe regresso a Portugal, torna-se professor catedrático no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (1960-62), mas acaba afastado, por duas vezes, da actividade docente pelo poder salazarista, em virtude da sua intervenção cívica – que se manifestou, por exemplo, em 1969, na participação no Congresso Republicano de Aveiro, e na publicação de livros como “O Socialismo e o Futuro da Península” (1970) e “Um Rumo para a Educação” (1974).
Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 (a Revolução apanha-o em França), a convite do General António de Spínola, torna-se ministro da Educação e Cultura no II Governo Provisório, liderado por Vasco Gonçalves. Retoma depois o lugar de professor catedrático, desta vez na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (UNL). Em 1984, é nomeado director da Biblioteca Nacional, a convite do ministro da Cultura, Francisco Lucas Pires. Jubila-se, em 1988, na UNL, sendo nesse ano alvo de uma homenagem nacional.
Em 2003, a pretexto do colóquio que lhe é dedicado em Paris, com o título “Portugal e o Mundo. Leituras da Obra de Vitorino Magalhães Godinho”, manifesta-se, em entrevista ao PÚBLICO (ver edição de 15 de Dezembro desse ano), bastante céptico com o tempo e o estado do mundo.
“O ruir do Império Soviético foi também a ruína do Ocidente, que permitiu a formação de um novo império – o império americano –, sem controlo e em moldes ultrapassados: continua a ser proibido estudar Darwin nas escolas, há perseguições às clínicas que praticam o aborto, há ataques à mão armada... Há meios de matar – a partir da transformação introduzida pela informática –, que estão ao alcance de qualquer pessoa. Foi tudo tão rápido, deu-se um vazio e uma incapacidade de organização para resistir, para orientar essa mutação para outros sentidos. Perderam-se as balizas. A humanidade perdeu o controlo. Inclusive, as estruturas económicas mudaram por completo. O capitalismo ruiu, como ruiu o estalinismo. Não há mais capitalismo. O que há é uma organização de redes mafiosas que controlam o mundo”, disse então. E manifestou também o seu mal-estar pela situação política em Portugal. “A minha opinião é a de que, hoje, não existe democracia. O grande erro é partir-se do princípio que se construiu uma democracia, quando não se chegou a construir uma democracia”, comentou então Vitorino Magalhães Godinho.
Presidente da República lamenta morte de "um grande homem de cultura"Cavaco Silva já veio lamentar a morte de Magalhães Godinho, numa mensagem puiblicada no site da Presidência da República. O Chefe de Estado lembrou Magalhães Godinho "como um dos mais notáveis historiadores do século XX", que "marcou sucessivas gerações de historiadores e cientistas sociais pelo carácter inovador, pela erudição e pelo rigor da sua investigação". Cavaco Silva lembrou o historiador pela sua "conduta cívica exemplar", que "nunca deixou de assumir a atitude crítica que a sua responsabilidade cívica exigia face aos problemas da sociedade portuguesa".
"Portugal perdeu um grande homem de cultura. O seu exemplo como cientista, professor e cidadão perdurará na memória dos que com ele privaram, dos que tiveram o privilégio de o conhecer e admirar como académico e de todos os que através da sua obra e do seu ofício de historiador renovam dia a dia o legado de um Portugal aberto ao Mundo", conclui a mensagem de Belém.
Notícia actualizada às 16h26