A nossa cidade

Serge Tréfaut contou já em entrevistas a aventura que foi a rodagem deste documentário sobre uma cidade paralela que se formou dentro de uma cidade (o Cairo, que circula à volta e não querendo reparar). É uma cidade entre túmulos ou dentro de túmulos em que se monta uma casa que várias vezes é preciso desmontar por causa de um funeral - e a seguir volta a pôr-se a mesa ou a fazer a cama sobre o local onde jaz, novinho em folha, o morto. É uma cidade paralela: o cemitério do Cairo.


Devido às idas e vindas (Portugal-Egipto) espaçadas no tempo, contou o realizador, essa "cidade" parecia resistir a deixar-se fixar e à sua singularidade no documentário; e as figuras não conseguiam ascender à condição de personagens. Tréfaut lançou, então, mão de um artifício - a voz "off " de um coveiro. Sabemos como a voz "off" costuma ser bengala nos documentários, mas aqui ela revelou-se preciosa: enche "A Cidade dos Mortos" de espírito(s), do espírito de um lugar, algo que, filtrado pelo olhar de Tréfaut, aparece com uma energia pícara (e às vezes até algo próximo de um certo neo-realismo fantasista: a sequência em que o circo chega à cidade, ao cemitério, podia vir de "La Strada", de Fellini). E visivelmente serena e orgulhosa, como nas cenas de um casamento que o realizador decidiu autonomizar da longa-metragem, porque corria o risco de ocupar nela demasiado espaço, e funciona como um bónus na sessão de cinema: "Waiting for Paradise".

Os habitantes deste cemitério, que vivem próximos dos vermes e da prodridão, contam, e assim se contam: "a nossa cidade". Sempre entre a vida e a morte, é algo que se tacteia, sem se fixar. "A Cidade dos Mortos" mantém sempre a dualidade como horizonte - é uma forma de se manter sempre ao alcance dos espíritos -, não forçando nunca um duelo ou uma vitória: uma espécie de toca-e-foge que vai da podridão da carne, do cheiro das "ruas", para a corrida hormonal dos rapazes que fazem o "cruising" atrás das raparigas.

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