A banda

O sucesso de Lídia Jorge (n. 1946) deve-se à lufada de ar fresco que representou a publicação de livros como "O Dia dos Prodígios" (1980), primeiro de uma obra hoje canónica, e "A Costa dos Murmúrios" (1988), simultaneamente ponto de chegada e "deslaçamento" desse modo de ficcionalizar a História com as ferramentas do realismo fantástico (desenganem-se os que o reduzem à evasão do real). Lídia, que terá lido Carpentier com ele deve ser lido, assimilou bem a lição do caribenho. E, assim que pôde, criou uma língua nova.Diria que o ponto de viragem se deu com "O Vento Assobiando nas Gruas" (2002), mas é convicção privada, sem propósito doutrinal, apenas corroborada com o que chegou depois.

"A Noite das Mulheres Cantoras" deve ser lido ao som das Doce, a "girl band" (1980-84) que revolucionou a pop portuguesa no tempo pré-europeu que acicatou as cicatrizes da borrasca imperial: "A certa altura [...] apenas possuíamos umas malas que abríamos à noite e fechávamos de manhã, à medida de um corredor de hotel onde ficámos alojados durante seis meses. [...] Era o que nos restava de um tremendo erro de cálculo, um apego extemporâneo do meu pai a uma fábrica de chá nos campos do Gurué." Solange de Matos não esquece.

Lídia compõe os retratos minuciosos dessas cinco raparigas "com histórias e naturalidades distintas, atraídas em simultâneo desde várias partes de África pelo som de um piano." A narradora é Solange de Matos: usa quatro heterónimos e faz o "patchwork" da intriga. Madalena Micaia, a voz do grupo, sobrevivendo em África rodeada de "sida e peste". As irmãs Alcides, Maria Luísa e Nani, duas raparigas bem nascidas com quem Solange mantinha uma "ligação subterrânea" desde os bancos do Anfiteatro Um da Universidade Nova de Lisboa. Têm voz de soprano, simétrica à violência dos insultos ("Vão cantar para o Huambo.") e pichagens que provocam. Querem que Solange lhes escreva "lyrics", sublinham "lyrics" em inglês, embora Nani, a mais nova, também queira "gerar um movimento, um grito, uma interrupção qualquer." E depois Gisela Batista, a "maga" pré-punk que desconstrói a sociedade burguesa sem prescindir da segurança material das classes possidentes. Cinco mulheres à procura de um país.

Lídia segura o "plot" sem perder de vista a História. Ficou dito, ou pelo menos intuído, que a descolonização uniu o grupo. Solange é filha de um regente agrícola nas terras do chá, guarda recordação dos picos azuis do Namuli, em pleno Gurué (Moçambique), em especial daquele dia profético em que o "aluno dilecto" do pai lhes mostrou o panfleto independentista: "Expulsá-los-emos até à sua última pegada." Dali ao retorno foi um passo, pela rota de Joanesburgo, após a partida dos contingentes. Tinham à sua espera o Sobradinho.

Romance contemporâneo sobre a construção do êxito, pode-se dizer, sem risco de controvérsia, que "A Noite das Mulheres Cantoras" revisita o Portugal dos "eighties". Tudo aí vai dar, mesmo o Mahler que "incendeia" certa casa da Praça das Flores, entalado entre Grieg e um sucesso da banda: "Ah! Afortunada, afortunada / Por isso esta canção / Te dá tudo / E não quer nada..." Muito interessante o modo como Lídia ilustra o despertar da "libertinagem" pequeno-burguesa, estocada final nas convenções: "Todos nus à piscina! [...] O slip do José Alexandre era escuro, mas o do Lucena era claro, e quando saltava e se movia era como se estivesse nu..." Com o estardalhaço próprio de iniciados, as pessoas comuns tomavam prerrogativas dos "eleitos" (alta sociedade, artistas). Chegando na hora certa, aquela banda de mulheres talentosas, altas e bonitas trouxe o ímpeto do futuro.

Mais-valia: Lídia escreve com linearidade (vantagem de quem tem voz própria), sugestionando o leitor com delicadas incursões no universo psicológico das suas personagens. Não se pode dizer o mesmo de muitos.

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