Faz sentido que o primeiro livro de Andrew Sullivan (n. 1963) a ser traduzido em Portugal seja "A Alma Conservadora" (2006). Para a geração de intelectuais de direita que nasceu imediatamente antes ou depois de 25 de Abril de 1974, Sullivan é uma referência incontornável. Publicado no momento em que a revelação dos abusos cometidos por militares americanos e britânicos na prisão iraquiana de Abu Ghraib gerava uma onda de indignação em todo o mundo, "A Alma Conservadora" fez com que a esquerda perdesse o monopólio da boa consciência. Ponto de viragem, portanto.
Andrew Sullivan é um inglês que pouco antes de completar 22 anos trocou a Inglaterra de Thatcher pela América de Reagan. Homossexual, católico devoto, aluno de Magdalen (Oxford), político conservador, activista gay, editor da "New Republic" entre 1991 e 1996, autor daquele que é considerado o texto mais influente na defesa dos direitos da minoria homossexual ("The Politics of Homosexuality", 1993), fundador do "Daily Dish", colaborador regular da "New York Times Book Review", editor sénior da "Atlantic", comentador e conferencista respeitado, usa de parcimónia no auto-retrato: "Cresci na Inglaterra dos anos setenta e oitenta. Eu era um adolescente thatcherista [...] Nunca fui militante, quer conservador ou republicano, porque por natureza não sou um aderente." Acontece a muito boa gente.
Sullivan descobriu cedo que "a política podia fazer a diferença no mundo." Apoiou Clinton em 1992, Bush em 2000 e Kerry em 2004. "A Alma Conservadora" explica por que razão se afastou do Partido Republicano: a tradição conservadora anglo-americana é o exacto oposto da filosofia e da política actual do partido. Não ter de lidar com "políticas a retalho" permite-lhe bater-se por princípios. Ponto de partida: "Todo o conservadorismo parte de uma perda." O tópico é de Burke, mas Sullivan faz bom uso dele num tempo em que a rapidez da mudança social tudo nivela. Não deixa de ser irónico que a pulverização da "verdade" tenha expressão na cacofonia dos 'bloggers'.
Lembrar o óbvio: "Os seres humanos vivem graças à narrativa; e ficamos tristes quando um actor conhecido desaparece de uma telenovela ou quando um nosso conhecido muda de casa [...] resistimos contra a interrupção, e quando resistimos somos conservadores." Num mundo sem "autoridades culturais estáveis", a volatilidade faz a regra. O lado negro das mudanças tecnológicas e económicas tornou-se o motor da vaga conservadora? Por que é que Keynes e Galbraith, que anunciaram o fim do desemprego (o primeiro) e da pobreza (o segundo), foram tão categoricamente desmentidos?
A querela dos fundamentalismos cristão e muçulmano é um ponte forte. Sullivan expõe com clareza o elenco de simetrias entre Jerry Falwell (cultura judaica e Anticristo) e Ahmadinejad, ou James Dobson (casamento entre pessoas do mesmo sexo e destruição da terra) e Osama Bin Laden. Mais: atento o contexto, a linguagem de William Kristol não se distingue dos pressupostos da 'Sharia'. Linha recta: "Desde o assassínio de Anwar Sadat à fatwa contra Salman Rushdie, à campanha já com a duração de uma década de Bin Laden, à destruição das antigas estátuas budistas pelos Talibãs até ao massacre do World Trade Center e o assassínio do realizador holandês Theo van Gogh há só uma linha. Essa linha é fundamentalista e religiosa." Os números não mentem: das Cruzadas à Inquisição, "o cristianismo tem piores registos [...] a Europa viu mais sangue derramado do que o mundo muçulmano." Sullivan, católico devoto e conservador militante, vive num país onde os cristãos reconstrucionistas e os Promise-Keepers fazem valer a sua condição de soldados do "exército de Deus". A religião não é figura de retórica. Contudo, e o ponto merece realce, os pais fundadores (de Madison a Jefferson) não estavam interessados em impor uma doutrina. Pelo contrário, demonstraram estar mais preocupados "em pensar no que teria levado à falência da democracia grega e romana do que nas subtilezas de Tomás de Aquino."
Presumo que a análise da Era Bush cause engulhos aos liberais indígenas. A explosão da despesa do Estado, a maior desde Roosevelt, e da dívida pública, fala por si: financimento para "a educação do carácter [e] saber distinguir o bem do mal"; contratação de "mentores para mais de um milhão de estudantes universitários de meios carenciados e de filhos de reclusos"; subsídios a fundo perdido para "escolas que queiram utilizar testes de droga; idem para programas de abstinência"...
Muitas das melhores páginas são dedicadas à guerra do Iraque. Sullivan foi dos que apoiou a invasão (em 2003), mas perturba-o que o poder executivo tenha agido "livre de qualquer controlo legislativo, judicial ou internacional" (os Estados Unidos ignoraram as Convenções de Genebra), tendo a administração Bush admitido a prática de tortura em Guantánamo, bem como em prisões iraquianas, afegãs e de outros países. Corolário: "A América deixou de ser uma república constitucional, respeitadora da lei, para ser o império de um só homem"...Enfim, muito mais haveria a dizer de um livro que não se esgota numa breve resenha.
Personalidade polémica, Andrew Sullivan deve ser lido e discutido fora dos círculos de 'happy few'. Obras como "Virtually Normal: An Argument About Homosexuality" (1995), "Love Undetectable: Notes on Friendship, Sex and Sur" (1998) e "Same-Sex Marriage Pro & Con: A Reader" (2004), para só citar algumas, deviam ser rapidamente traduzidas.