Por causa do gaullismo que lhe era imputado, Romain Gary (1914-1980) tem sido negligenciado na edição portuguesa: menos de meia dúzia de traduções em dezenas de títulos. Em Portugal, nem "As Raízes do Céu", Prémio Goncourt 1956 traduzido em 1958 à boleia do filme de John Huston (com Errol Flynn, Juliette Gréco e Orson Welles), chegou para impor este judeu lituano naturalizado francês. Aviador, resistente anti-nazi em Londres e no Magreb, várias vezes condecorado, diplomata durante vinte anos (entre 1952-54 representou a França nas Nações Unidas), "bon vivant", marido da editora da "Vogue" inglesa e de uma actriz americana, cineasta bissexto (dirigiu dois filmes de Jean Seberg, mãe do seu filho), suicidado com um tiro na cabeça aos 66 anos, deixou uma obra pontuada de tragédia, humor e cinismo. "La Promesse de l'aube" (1960), autobiografia traduzida por Augusto Abelaira em 1962, dá a medida do homem que nasceu e cresceu em Vilnius, quando a capital lituana era parte do Império Russo.
"Uma vida à sua frente" tem antecedentes curiosos: publicado em Setembro de 1975 sob o pseudónimo de Émile Ajar, obteve o Goncourt desse ano. Assim, Gary tornou-se o único autor a bisar o prémio. A verdadeira identidade de Ajar só foi revelada após a morte de Gary. Porém, Didier Van Cauwelaert escreveu em "Le Père adopté" (2007) que o milieu sabia. Seja como for, o episódio alimenta a lenda. Os primeiros livros, publicados entre 1935 e 1937, foram assinados com o nome de baptismo (Roman Kacew). O fim da guerra trouxe o primeiro que assinou como Romain Gary, "Educação europeia" (1945), saga da Resistência que Sartre elogiou com ênfase. Também usou os pseudónimos de Fosco Sinibaldi (1958), Shatan Bogat (1974) e Émile Ajar, autor de quatro romances entre 1974-79. Na posse de todos os dados, a posteridade tem reavaliado a obra, corrigindo o tiro inicial ("réactionnaire", dizia a margem esquerda), mas o Robert "des grands écrivains" ainda o deixa de fora.
Os romances de Gary denotam particular estima por escroques, saltimbancos e desapossados de vária índole. "Uma vida à sua frente" não constitui excepção. A odisseia de Mohammed em casa de madame Rosa, prostituta que sobreviveu a Auschwitz e se retirou das lides, sem ter esquecido que "não é preciso ter razões para ter medo", ilustra bem esse universo subversor de códigos e valores. O jovem Momo, como ela lhe chama - "Momo" é também o título da edição em língua inglesa -, cresce no infantário para filhos de judias e "toleradas" que madame Rosa explora na rua Blondel. (Quem viu o filme de Moshé Mizrahi sabe que Simone Signoret lhe emprestou o rosto.) Estamos perto do imaginário e da dicção de Genet, sem as atribulações do sexo fora-da-lei e o lado negro do "gamin" de Mettray. Digamos que Momo doseia a vigarice: "Entrei num salão de chá para senhoras, devorei dois bolos, éclairs de chocolate, são os meus preferidos, perguntei onde se podia mijar e quando voltei fui directo à porta, e adeus. A seguir, roubei umas luvas [...] e fui deitá-las ao lixo. Soube-me bem." Afinal, Momo tem apenas 12 anos. É ele o narrador da história.
Um narrador apesar de tudo bem articulado: "A primeira coisa que vos posso dizer é que morávamos num sexto andar sem elevador..." (No original: "La première chose que je peux vous dire c'est qu'on habitait au sixième à pied...") Para um garoto de Bellevile, sem instrução, rodado no convívio quase exclusivo de outros como ele, pode-se dizer que a narrativa segue o cânone, sem a pretensão de encenar a realidade, calão reduzido ao mínimo e ausência de remissões culturalistas. Momo não é um produto textual como outros que chegaram depois dele. É um rapaz à deriva na Paris do pós-guerra: "Os chuis, é o que existe de mais forte no mundo. Um miúdo com um pai chui é como se tivesse duas vezes mais pais do que os outros." O tipo de aforismo que fez escola entre modernos afinal tão antigos.
É provável que o fio da intriga remonte à Nice anti-semita dos anos 1930, cidade que o acolheu e à mãe quando deixaram a Lituânia. Importa pouco. Momo tem vida própria.